aos gritos, com a voz projectada sobre um dos relvados do centro de estágio do benfica, no seixal, jorge jesus não desarma nem um milímetro da sua visão de jogo. «aí é do cardozo», atira o treinador, segundos antes de voltar a apontar com um enérgico bracejar: «aí é que já não é».
à distância de uma das linhas laterais, e com um aglomerado de mais de 20 jogadores no horizonte, esse ser-ou-não-ser ali o espaço de cardozo encosta as atenções da reportagem ao lado direito do campo. mas, da mesma forma que o pedaço de terreno reservado ao avançado paraguaio baralhou os movimentos do plantel, também acaba por escapar ao nosso golpe de vista.
habituado a estes desalinhos de visão, jesus acerta os passes sem maiores dificuldades: «o treinador tem de ter capacidade de ver coisas que mais ninguém vê», explicava ao sol o técnico do benfica no último sábado, numa visita guiada pelo seu núcleo de acção no seixal.
é aqui, numa sessão de treinos aberta apenas à observação da nossa equipa de reportagem – a escassos quatro dias de os encarnados começarem a disputar a terceira pré-eliminatória da liga dos campeões –, que o engenho ocular do míster se apresenta como um dos traços mais firmes do seu carácter técnico.
«comparo muito o treinador a um pintor», atira este orgulhoso filho da amadora, de descrição virada para a cobertura televisiva de uma exposição da artista paula rego. «lembro-me de uma coisa que me chamou a atenção: o facto de uma personagem [das obras] chamar-se maria elisa, que era o nome da minha mãe. a paula rego estava a dizer à pessoa que a entrevistava que a maria elisa estava a chorar. mas essa pessoa dizia que não via. ou seja, o criador via que a maria elisa estava a chorar, um pouco como o treinador vê aquilo que os outros não conseguem».
a ideia, abreviada na convicção de que o míster é, antes de mais, «um criador», inspira a rotina de treinos de jorge jesus desde 1990, o ano da sua estreia como treinador, na altura à frente dos destinos do amora.