Dizer sim.

Encontrámo-nos para almoçar. O meu amigo disse logo que não fazia questão quanto à comida, desde que fossem sardinhas assadas com batatas cozidas e vinho verde tinto. Pusemo-nos facilmente de acordo.

conversámos – já não nos víamos há algum tempo – sobre a carreira profissional dele. disse-me que não tinha sido fácil conciliar trabalho intenso e exigente, com a sua vida de família, com quatro filhos. mas que sempre o tinha conseguido. antes de mais, sublinhou com carinho, graças a sua mulher que nunca lhe exigiu nada, nunca viu nele uma aposta que tinha de ganhar, mas sempre tinha estado ao seu lado – e ele ao dela – amorosamente em todos os momentos da vida, tudo compreendendo e tudo apoiando.

depois, porque nunca tivera objectivos a alcançar, aumentos de salários ou de carreira. deixava todos estes aspectos a deus que lhos proporcionara sempre inesperadamente, na altura certa, sempre muito mais do que ele esperava. algumas vezes aparecia uma alternativa que ele sempre olhara com ‘indiferença’, pensando na escolha que melhor conviria ao serviço dos outros, portanto de deus, e à sua maneira de ser. sempre tinha sido particularmente atento a esta última, nunca querendo ir acima das suas possibilidades. quando chegava a uma conclusão, dizia sim em paz de espírito. lembrando-se sempre do que alguém lhe dissera no sul do brasil: «tens de ser o que és e não o que não és. porque se não fores quem és, não és. e isso não é bom».

tentou dar sempre o máximo dentro das suas possibilidades, à família e à sociedade, portanto a deus. e falou-me do seu sentimento de dívida para com os outros que sabia que nunca ia pagar mas que tentava compensar.

nos momentos, muito numerosos, de cansaço e de desânimo, sempre trabalhara para estes – e tirou do bolso uma fotografia da mulher e dos filhos. e sempre vivera para eles. a este propósito, disse-me que nunca tinha almejado ao máximo, mas sim a fazer cada vez melhor no lugar em que estava.

neste momento lembrou-me as palavras de dag hamarskjoeld, ex-secretário geral da onu: para o passado, dizer obrigado; para o futuro, dizer sim. não sabia, disse-me, onde estaria amanhã ou dentro de dez anos; mas sabia que era o amor que o ia conduzir, de modo que dizia sim.

uma preocupação: não ter, por vezes, no seu íntimo, dado suficiente amor aos seus inimigos. nunca se transformara naquele que eles queriam: azedo e desconfiado. é certo que nunca se vingava. e sempre rezava pedindo para eles a bênção de deus. mas era difícil, pelos menos no inicio, amá-los. falou-me da sua pior experiência profissional. vivendo há anos num país onde o despedimento é livre e sem indemnização, o seu superior disse-lhe que ia despedir um colega. que não fizesse isso, pedira-lhe, por ser um bom empregado. «não interessa, não gosto dele». ao menos tenha compaixão, pense na família que depende dele. «ao diabo, a compaixão». ficara com má vontade a este ‘chefe’. talvez se tivesse sentido, até, melhor do que ele.

amar os outros parece muito fácil, mas, na prática, estar sempre disponível para eles é algo que se vai aprendendo ao longo de toda a vida. como conseguia? perguntei-lhe. respondeu-me que esse caminho lhe tinha sido facilitado por deus. sempre se considerara muito pobre (em espírito). e o pobre que ele era nunca se julgara superior a ninguém, antes ao serviço de todos. os pobres são mais sensíveis aos outros do que os cheios de riquezas, de honrarias e de orgulho. fora materialmente pobre em diversas épocas da sua vida. e nesses momentos encontrara o apoio de outros pobres como ele. e quando estava precisado de conforto espiritual este nunca lhe faltara.

interrogava-se mesmo se tinha saboreado devidamente a amizade e o amor, as paisagens, as flores, os vales e as montanhas, as crianças e os velhos. perguntei-lhe se gostava do silêncio. respondeu-me que só no vazio de si e do ruído conseguia apreciar tudo aquilo a que se referira. acabámos falando de thomas merton, da sua obra. e passámos aos santos cristãos do deserto do próximo oriente nos primeiros anos do cristianismo: afasta-te, aquieta-te e ouve. disse-me que se defendia guardando algum tempo durante o dia sem ‘redes sociais’. era o seu deserto. ou então, estando com os filhos e netos. estávamos a enveredar pela sociedade de risco, mas vimos as horas. despedimo-nos com a nossa maneira de dizer sim: vai com deus.