Das Duas Uma

É urgente ler Slavoj Zizek, um intelectual que não se conforma que a Europa tenha abandonado a social-democracia.

quando daqui a uns bons anos a europa tiver sobrevivido a esta crise (sejamos optimistas), os nossos netos, ao ler a imprensa e ao ver os telejornais desta época, vão-se interrogar, como a minha geração se interrogou relativamente ao mundo entre as duas guerras: «como é possível que eles não tenham visto que isto ia acontecer? e como é possível que não o tenham evitado?» e vão encontrar, entre os escombros, as vozes de alguns intelectuais, filósofos, professores ou artistas que alertaram, impotentes, para o desastre, que não se calaram e pagaram, por vezes com a liberdade e mesmo com a vida, terem dito aquilo que um imperativo de consciência lhes tinha ensinado a não calar.

hoje, mais do que nunca neste século, os artistas têm que pensar na responsabilidade e – não tenhamos medo das palavras – na utilidade do que fazem: que filmes, que peças de teatro, que livros, que música temos o direito – e o dever – de produzir? como podemos ajudar as pessoas a perceber, a resistir e a agir? os intelectuais, por sua vez, desapareceram do nosso horizonte, quiçá por, num passado recente, muitos deles se terem comprometido com soluções totalitárias – ao contrário dos unamunos, thomas mann, camus, georges orwell e tantos outros, que fizeram da liberdade um valor inegociável.

hoje, nas tvs e nos jornais, os poucos que resistem ao que foi a obscena apostasia da maioria dos intelectuais de esquerda, abafados pelo pensamento dominante (que está entregue aos economistas de serviço e aos políticos formatados nas jotas, que nos falam da crise com a mesma impotência com que os boletins meteorológicos nos avisam sobre o tempo), são-nos servidos em gotas homeopáticas, como as gotas de angustura que se devem deitar num mojito ou de worcestshire numa salada césar – para servir de caução à boa consciência dos editores.

mesmo se sei que não serve de nada – porque a humanidade não tem emenda e só sai das crises depois de as catástrofes terem acontecido – o que me dá algum alento «nestes tempos de aflição», de que falava holderlin, é a leitura de alguns intelectuais que nos ajudam a pensar que a tragédia dos nossos dias e o colapso do humanismo não eram inevitáveis. já aqui falei de tony judt, que devemos ler, reler e tornar a ler, mas podia citar slavoj zizek, um intelectual que não se conforma que a europa tenha abandonado a social-democracia, e cujo viver no fim dos tempos acaba de ser editado em portugal. actualmente, diz ele, «qualquer pessoa pode viajar até ao espaço, todos os meses são anunciadas novas descobertas contra alguns tipos de cancro (…). mas, ao mesmo tempo, em todos os telejornais, vemos políticos e economistas a explicarem que não há dinheiro para a segurança social. (…) vivemos numa época que promove os sonhos tecnológicos mais delirantes, mas que não consegue manter os serviços públicos mais indispensáveis».

apvasconcelos@gmail.com