Das Duas Uma

Na sua coluna no Público, Vasco Pulido Valente decidiu opinar sobre a RTP, que ele considera «uma instituição arcaica», dando uma caução intelectual ao anunciado propósito do ministro Relvas de a vender a um privado.

antes dele, já o constitucionalista jorge miranda e o economista joão duque tinham vindo defender que o estado se desembaraçasse da ‘velha senhora’. acredito que dizem o que pensam, mas não pensam no que dizem.

o vasco é um dos meus mais velhos e fiéis amigos, alguém com quem partilhei experiências, emoções e ideias, mesmo se, de há uns anos para cá, se foi afastando, intelectualmente, daquilo que nos havia unido na juventude. ora, o seu artigo, pela ligeireza com que faz afirmações peremptórias que nenhuma argumentação sustenta, não anda longe daquilo a que eu chamaria de ‘conversa de barbeiro’. falar na ‘desgraça nacional em que se tornou a rtp’, que «nunca inspirou aos portugueses o mais leve respeito» (quem lhe disse? e quais portugueses? os 28% que, masoquistamente, continuam a vê-la?); ou que gasta «o dinheiro que gasta» (três euros por mês por cada um de nós); ou, mais grave, a forma como desconsidera o papel fundamental da bbc e, de um modo geral, das tvs públicas na reconstrução da europa do pós-guerra, na consolidação da paz e da democracia e na elevação dos padrões culturais dos ingleses, são afirmações gratuitas. alguém como ele, que lá viveu, muito antes de murdoch e a senhora thatcher se terem aplicado a destruir o que restava de decência, qualidade e isenção na tv do reino unido, não devia afirmar, com uma tola ironia, que a bbc teve «o amável encargo de salvar o povo ignaro das trevas em que infelizmente vivia». devia talvez interrogar-se se haverá alguma relação, por exemplo, entre a decadência da itália e a tomada do poder, por via da apropriação das três tvs privadas, de silvio berlusconi.

mas o que mais me choca, neste como noutros artigos, é a rendição de pulido valente ao argumento da inelutabilidade da decadência: segundo ele, a democratização da cultura trouxe consigo o populismo do gosto – contra o qual não há nada a fazer. para alguém que sempre ligou o atraso nacional ao atraso da educação, que toda a vida acreditou no poder das ideias, da cultura e do gosto, e na nobre tarefa de ensinar, esta fatalidade deixa-me perplexo.

no século xii, viveu na península um filósofo árabe chamado averróis, que muito contribuiu para o renascimento da cultura humanista no ocidente. um dos seus argumentos contra a tese da predestinação, era o de que todos os que negavam o livre-arbítrio deviam ser torturados até pedirem aos seus algozes para parar, admitindo assim, que o seu destino não era uma fatalidade. se não fosse o enorme preço a pagar, era isso que eu desejava ao pulido valente: sujeitar-se à tortura de ter que conviver com três tvs privadas, e, sobretudo, com o embrutecimento cada vez maior de um povo que ele desespera de, um dia, ver civilizado.

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