ruiz já era um cineasta singular pela quantidade de filmes realizados (mais de 50 ao todo), pela capacidade de se adaptar a toda a espécie de dificuldades e constrangimentos, pela exploração de novas técnicas e pela procura constante de novas formas e linguagens. ruiz era um experimentador, o que não é o mesmo do que um cineasta experimental.
conheci-o em paris, nos anos 80, onde se tinha exilado para escapar à sinistra ditadura de pinochet. vi nessa altura l’hypòtese du tableau volée e percebi que havia ali um cineasta. depois, não acompanhei como gostaria os filmes que se foram sucedendo, mas estive envolvido na produção de o território, que ele fez em portugal. por razões que têm a ver com peripécias que um dia contarei, acabei por não poder filmar um guião que escreveu para mim, no início dos anos 80, uma adaptação de ma mère, de george bataille, um escritor pelo qual, na altura, eu tinha uma verdadeira obsessão.
por essa altura, tive ocasião de privar com ele e descobri um espírito com uma curiosidade insaciável, uma capacidade para se interessar por outras culturas e pelos mistérios insondáveis do universo. invejei-lhe sempre a capacidade que tinha para filmar com toda a calma do mundo, somando filme atrás de filme – torneando as dificuldades, que eram sempre bem-vindas, porque lhe davam oportunidade para encontrar soluções engenhosas e inovadoras – e, ao mesmo tempo, ler como lia, compulsivamente. lembrava borges, com quem partilhava a atracção pelo fantástico e a paixão pelos livros que ninguém lê. e tinha afinidades com cortázar, pela herança de poe e do surrealismo.
que ele tenha feito os mistérios de lisboa é uma prova mais da sua capacidade de absorver outras línguas e outras culturas. esse lado cosmopolita, que faz as grandes culturas e que é um dos défices da nossa, permitiu-lhe descobrir camilo, graças à feliz iniciativa de paulo branco e à exemplar adaptação de carlos saboga, um argumentista com um talento desmedido, que portugal tarda em reconhecer. nas mãos de visconti ou polanski (dois grandes cineastas) este filme com mais de quatro horas, e que roça a obra-prima, teria custado cinquenta vezes mais, e não é seguro que o resultado fosse melhor. e tem duas vantagens incalculáveis: vai levar os franceses a descobrir o génio de camilo (depois da tradução do romance outras se irão suceder), que ficou sempre abafado pela ‘modernidade’ do autor de os maias; e ajuda à internacionalização dos actores e dos técnicos portugueses, que fazem milagres neste filme. os mistérios de lisboa veio provar a importância da tradução e da co-produção, sem as quais um país e a sua cultura serão sempre paroquiais.
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