Fénix para quem pode

Acabar um livro é como acabar uma relação; uma pessoa pensa que chegou ao fim algumas vezes antes do fim realmente chegar.

e às vezes não sabemos como acabar, e por isso adiamos, voltamos, hesitamos, mudamos de ponto de vista, alteramos o fio da historia, respiramos fundo e recomeçamos, acrescentamos novos capítulos, voltamos a acreditar, fazemos tudo o que está ao nosso alcance para não desistir, para continuar, até que o fim se desenhe nítido e sem dúvidas.

no amor, tal como na escrita, o fim pode demorar meses até ser claro. e se um grande amor nunca é espontâneo, o fim de uma história de amor também nunca o é. ainda que o outro lado disfarce, se esforce para nos agradar, ou finja que não percebe o que está a acontecer, nós vamos dando sinais. um silêncio mais longo, um olhar mais vazio, um suspiro mais profundo, um encolher de ombros mais abandonado, uma hesitação na voz, as mãos escondidas nos bolsos ou os olhos atrás de óculos escuros, pequenos gestos que dizem quase tudo, sem sequer falarmos. está tudo lá, mas o outro lado não os vê, porque não consegue, ou porque não quer.

há quem passe dos sinais à verbalização e explique o que não gosta, o que não lhe interessa, o que incomoda, o que simplesmente não suporta. falar é bom, mas só se a outra parte souber ouvir. para muitas pessoas, falar é difícil. para quase todas, ouvir ainda é mais. todos gostamos que nos digam que somos belos, inteligentes e irresistíveis, mas não é fácil ouvir que fomos egoístas, mal educados ou ridículos. conseguimos ouvir as críticas que os nossos amigos nos dirigem, com muito mais abertura e tolerância do que aquelas que o nosso amor nos faz, porque nos sentimos vexados, humilhados, sem perceber porque é que o outro nos ama, se afinal temos tantos defeitos. o amor requer um pedestal, gostamos de nos ver lá em cima, se nos tiram de lá, como iremos sobreviver à realidade?

as críticas entre aqueles que se amam atiram cada um para a sua trincheira à velocidade da luz. e depois, para conseguir sair dela, é preciso muito esforço, muito amor e muita cabeça.

nos livros, como no amor e como na vida, não existem processos lineares; conseguimos amar e detestar a mesma pessoa ao mesmo tempo; desejar a sua presença e, em simultâneo, rezar para que perca o comboio ou tenha um furo e não venha ter connosco. o medo mistura-se com a paixão, as saudades com a raiva e só a vontade vence. vontade de abrir o coração ou de o fechar. de dar a mão ou de deixar cair. de recomeçar ou de terminar. de dar mais uma oportunidade ou de atirar a toalha ao chão. é a vontade que comanda tudo, e muitas vezes é o medo que comanda a vontade. tenho medo que não mudes, tenho medo que me falhes, tenho medo de nunca deixar de ter medo.

mesmo assim, é mais fácil acabar um livro, porque o livro é só nosso. eu mato a princesa quando me apetece, eu é que mando vir o pinóquio, o ogre, o príncipe, o sapo ou o gato da alice. eu escolho as ultimas palavras que cada um deles diz. no amor não é assim, porque in the end ninguém manda nada; ou o amor é mais forte, e vence tudo, ou a vida é mais forte, e vence o amor.

o mito da fénix não é para quem quer, é só para quem pode.