O ‘governo’ do Estado

O discurso político corrente em todos os países assenta na linearidade da vida social, no determinismo, na previsibilidade e no controlo. Promovendo decisões (leis, resoluções, actos administrativos) que supostamente irão produzir resultados previstos e controlados. Há que desmontar este discurso.

pensa-se que o todo é o resultado da soma das partes, sendo a realidade separável, as coisas independentes umas das outras. sucede que hoje se conhece a não-separabilidade da realidade. os comportamentos humanos são colectivos, em termos de a interacção de um grande número de elementos da mesma espécie revelar comportamentos novos. e, em certo sentido, é o sistema global o único provido de características e comportamentos próprios. depois, assenta-se no determinismo: seria possível prever com segurança a evolução do sistema social a partir das condições iniciais. as ciências sociais dos séculos xvii a xx assentaram demasiadamente num determinismo pouco crítico, na repetição e na previsibilidade.

ora, sucede que, mesmo que se conhecesse o estado inicial da sociedade (e há sempre factores ocultos) e as ‘leis’ sociais – o que nunca sucederá, desde logo por não existirem ‘leis’ sociais –, só se poderiam prever probabilidades. introduzindo a dimensão tempo, uma alteração muito pequena na situação da partida levaria a uma grande diferença na chegada. há que ver a realidade em termos de conjunto e não de partículas ou partes.

os sistemas económicos e sociais desafiam a análise matemática e a simulação. pequenas alterações nas entradas levam a consequências desmesuradas: o bater de asas de uma borboleta no século xviii no jardim botânico da universidade de coimbra terá levado, três séculos depois, a um dia de sol no rio de janeiro. da interacção de componentes individuais emergem imprevistas e imprevisíveis propriedades globais, que se repercutem em ricochete influenciando o comportamento dos componentes. infelizmente, o nosso pensamento ainda está influenciado pelas concepções de adam smith e charles darwin.

a sociabilidade é, para o sistema complexo da sociedade humana, para cada ser humano, uma característica essencial da sua existência e do seu progresso. as organizações humanas – sociedade, estado, empresas, partidos políticos, etc. – são sistemas adaptativos complexos integrados por um número indeterminado de agentes sempre em interacção e assim criando novos comportamentos para todo o sistema. sendo assim, os ‘dirigentes sociais’ (políticos, societários, etc.) não podem controlar/determinar as suas organizações, mas só influenciá-las numa certa direcção.

assim, se ultrapassam as teorias e as práticas de múltiplos quadrantes político-sociais que viam (sempre erradamente) nos cidadãos partículas da matéria sujeitas a leis matemáticas e nos trabalhadores ‘unidades passivas de produção’ integradas na máquina da empresa. aproximemo-nos do ‘governo’ do estado. não se dão conta muitos políticos que uma decisão de um tribunal de 1.ª instância pode, com o tempo, destruir o sistema financeiro; e que os maus tratos às crianças podem destruir a democracia. estabelecem prioridades: há que tratar, antes de mais, da economia. mas as medidas tomadas vão reflectir-se em diversos sectores da sociedade que, por reflexo podem destruir essa mesma economia.

a nível europeu, em que o aspecto financeiro parece (e é) primordial e urgente, discute-se se há que criar eurobonds ou reforçar o fundo de coesão. mais pensamento sectorizado e linear. devia perguntar-se: de onde decorre a crise financeira? como pode influenciar-se a evolução? actuando sobre que factores? e os factores ocultos?

se tivesse de escolher ‘centralidades’ na sociedade para garantir o progresso social, procurá-las-ia na educação e na justiça, certo embora do seu carácter apesar de tudo limitado.

com pensamento e discursos lineares e deterministas, os dirigentes políticos surpreendem-se que sistematicamente as suas políticas levem a resultados imprevistos e que os seus lugares sejam cada vez mais a curto prazo, caindo logo que, inevitavelmente, as previsões resultam erradas. e cada vez será mais assim, à medida que as sociedades cada vez mais complexas e globalizadas exigem um tratamento da informação desproporcionado às competências de alguns políticos. mas isto – a complexidade, o não determinismo, a não controlabilidade, a imprevisão – é a democracia. é o respeitar a realidade e o povo, não os fechando em estruturas abstractas, mas dialogando constantemente com eles.

no século xix em frança, um ministro das finanças dizia que se lhe dessem políticas sãs, ele daria finanças sãs. mas não é menos verdade que sem finanças sãs as políticas não podem ser sãs.