Das Duas Uma

Há uns dias para cá, alguns amigos que sabem que eu também faço filmes, começaram a mandar-me uns mails a remeter para um site onde se podem ver gratuitamente milhares de filmes dos últimos 70 anos.

a iniciativa partiu de um brasileiro que, num tom triunfalista, garante que o site ‘estourou’ em junho de 2007, ocasião em que ocorreram mais de 90 mil acessos num único mês, com mais de 5 mil visitas num só dia, feitas a partir de cidades dos cinco continentes. e, em 31 de dezembro de 2010, o site contava com 2.972 filmes ‘cadastrados’.

o que os meus amigos não sabem é que esta prática do download gratuito se, por um lado, põe à disposição dos curiosos quase todo o espólio do cinema mais popular, sobretudo de hollywood, e parece ser, por isso, uma forma de democratização da cultura, é um roubo e um acto lesivo dos direitos dos produtores e do trabalho intelectual e criativo dos autores. para além de outros efeitos nocivos, entre os quais a facilidade com que tudo é posto à disposição do ‘consumidor’, que mata à partida a curiosidade e o esforço (as duas fontes da aprendizagem), este fenómeno está a destruir a indústria das imagens, a comprometer a sobrevivência dos autores e a corromper a qualidade dos filmes.

dir-me-ão que é assim que a sociedade evolui, que se disse o mesmo quando apareceu o cinema (que ia matar o teatro), depois, quando apareceu a tv (que ia matar o cinema), mais tarde o vídeo e a internet. nos anos 50, a popularidade da tv fez perder 50% dos espectadores às salas americanas e fez tremer a ‘fábrica de sonhos’. a resposta foi combatê-la através da cor, do cinemascope, do som estéreo e dos filmes bíblicos. até que uma produção megalómana – cleópatra – ia destruindo a fox e fez os estúdios perceber que a resposta era outra: era preciso aproveitar os novos mercados da tv e do vídeo, em vez de os combater. em 1975, jaws, o primeiro blockbuster, foi precedido de uma campanha de três dias, com pequenos filmes promocionais de 30” exibidos nos prime time shows das três networks americanas. estreado pela primeira vez com mais de 400 cópias e com uma promoção maciça, em poucas semanas, o filme de spielberg bateu todos os recordes de receitas da história do cinema americano. e, anos mais tarde, o vídeo veio dar um novo fôlego ao cinema americano: nos anos 90, as receitas do visionamento doméstico dos filmes já eram quatro vezes superiores às receitas das salas. hollywood soubera adaptar-se à mudança.

por que não há-de o cinema adaptar-se aos novos tempos, como fez no passado? o problema não está na inevitável evolução das artes e das formas de espectáculo, mas no facto de, pela primeira vez, o roubo ser tolerado, senão encorajado. tal como com o wikileaks, estamos, ao mesmo tempo, perante novas liberdades e novos crimes, que a sociedade tem dificuldade em discernir e com os quais não encontrou, nem vai encontrar, forma de lidar.

apvasconcelos@gmail.com