Magic–20, VIH–0

A sala estava repleta de jornalistas. A CNN dava o directo, escutava-se o burburinho das conversas, do ajeitar de cadeiras, os flashes piscavam incessantemente. Do alto dos seus 2,06 metros entrou, de fato, ao invés do costumeiro equipamento amarelo dos LA Lakers. Earvin ‘Magic’ Johnson confirmou então os rumores das últimas horas: era seropositivo.

foi como uma condenação à morte. «quero deixar claro que não tenho a doença da sida, tenho o vírus do vih», sublinhou, sem nunca perder a calma, nem o característico sorriso aberto. e anunciou ainda a sua retirada imediata das competições. os fotógrafos continuavam de dedo no gatilho, nessa tarde de 7 de novembro de 1991, em inglewood, califórnia. então o basquetebolista de 32 anos, no auge da carreira, disse a frase mais acertada de todas: «isto não significa que a minha vida tenha acabado – porque não acabou. vou continuar a viver». aplaudiram-no. duas décadas depois, continua entre nós. já não faz só parte da galeria dos melhores basquetebolistas de todos os tempos, é o homem que construiu um império de negócios e que associou o seu nome à luta contra a sida. em 20 anos, não é pouco.

hoje, aos 52 anos, earvin ‘magic’ johnson – que ganhou a alcunha aos 15 anos, quando jogava na equipa da sua escola, em lansing, no michigan – é um businessman de fato e gravata, com negócios que geram milhões de dólares. a passagem do desporto para a alta finança teve os seus obstáculos. «toda a gente queria o autógrafo, mas ninguém queria investir comigo. no início, disseram-me ‘não’ umas dez vezes antes de alguém dizer ‘sim’. sabem o que diziam? que eu era um cromo do desporto», recordou magic, citado pela revista forbes em 2010.

magia nos negócios

teve de mudar mentalidades. o seu objectivo era investir nas zonas urbanas mais degradadas, onde a população é maioritariamente afro-americana ou hispânica, com menos recursos. esse era o seu nicho de mercado – e foi aí que se deu o crescimento da magic johnson enterprises (mje), que tinha fundado em 1987.

hoje, a mje expande-se por 98 cidades norte-americanas em 22 estados, com 40 mil funcionários a trabalhar nas empresas com as quais foram criadas parcerias, como cadeias de ginásios, cinemas, restaurantes, cafetarias, lojas de electrónica e electrodomésticos.

a ideia de investir em zonas degradadas, onde o comércio de retalho não entrava, surgiu pela experiência de magic: são os mesmos bairros desfavorecidos em que cresceu, com nove irmãos e irmãs, filhos de pai operário fabril e mãe contínua numa escola.

negócios à parte, o ex-basquetebolista criou, em 1991, logo após descobrir que era vih-positivo, a magic johnson foundation (mjf), que se dedica a causas sociais, como bolsas de estudo, testes de despistagem de vih, programas de prevenção, feiras de emprego, focando-se na população afro-americana e hispânica, em regra a mais desfavorecida na américa.

se johnson escapou ao rótulo que estava destinado a colar-se à sua vida, deve-o ao basquetebol – a bola tipicamente alaranjada com que se pratica este desporto faz parte do logótipo, tanto da fundação como da empresa.

a dar espectáculo

magic conseguiu ser campeão em todas as frentes: a jogar como base, venceu campeonatos na escola secundária, na universidade, na liga profissional nba e nos jogos olímpicos de barcelona, em 1992, quando fez parte da dream team dos eua e arrebatou a medalha de ouro.

na nba – uma carreira de 13 anos, com os la lakers –, foi por três vezes considerado o jogador mais valioso da época, sagrou-se cinco vezes campeão (em nove finais), foi por nove vezes nomeado para all-nba first team. já fora de campo, a liga retribuiu-lhe o brilho, a força e o espectáculo que devolveu ao jogo, considerando-o, em 1996, um dos 50 melhores jogadores da história da nba. em 2002, o seu nome foi gravado no chão, numa estrela do basketball hall of fame.

a carreira estava em ascensão, magic era uma estrela. a 26 de outubro de 1991, recebeu um telefonema do médico dos lakers para ir ao seu consultório. quando chegou, magic recebeu a notícia – e tinha de partilhá-la com cookie johnson, a mulher com quem se tinha casado meses antes e que lhe tinha dito, há dois dias, que estava grávida. «ela começou a chorar e a perguntar o que isso significava para ela e para o bebé, e não lhe soube responder. mas disse-lhe que percebia se ela me quisesse deixar. deu-me uma chapada e disse ‘vamos vencer isto juntos’», lembrou magic ao jornal usa today, em 2006.

juntos continuam, 20 anos depois. o resultado dos testes de cookie foram negativos e o bebé earvin iii também estava livre do vírus. em 1995, o casal adoptou uma menina, elisa, formando o trio de filhos (andre nasceu em 1981, de outra relação) de magic.

preconceito e rumores

na conferência de imprensa de 7 de novembro de 1991, magic anunciou ser portador do vírus e a sua retirada das competições – mas continuou a treinar. o problema é que nenhum outro atleta queria treinar com ele. há 20 anos, o preconceito gerado pela ignorância sobre o que é o vih, o que é a sida, era muito maior do que é hoje.

vários profissionais da nba, como karl malone, dos utah jazz, vieram a público revelar o receio de poderem ser contaminados por jogarem com magic, se este se magoasse em campo e fizesse uma ferida. as mentalidades mudaram. chamado para a dream team, a selecção de basquete dos eua, formada a 1 de setembro de 1991, magic foi às olimpíadas de barcelona – e jogou algumas vezes. fez-se campeão olímpico. ainda tentou o regresso aos lakers, como jogador e como treinador, em meados dos anos 90, até se retirar definitivamente. hoje mantém a vice-presidência do clube de los angeles.

em 1997, surgiam rumores de que magic estaria curado. os dois médicos que o acompanhavam apressaram-se a emitir um comunicado explicando que a carga viral tinha baixado para níveis quase indetectáveis nos testes existentes, mas que «indetectável não é igual a ausente». onze anos mais tarde, num programa de rádio dos eua, um dos intervenientes declarou estar «convencido que magic fingiu ter sida. porque ele foi o único tipo que alguma vez se curou da sida». magic respondeu: «há milhões a morrer de vih/sida e o facto de andarem a gozar com o meu estado de saúde é inacreditável».

numa altura em que o vih evoluiu, com a medicação e os cuidados correctos, para o estatuto de doença crónica, magic johnson mantém a mesma vontade de vencer. «quando jogo com a minha filha, de 15 anos, deixo-a chegar aos 9 pontos. e depois esmago-a. adoro vencer em tudo», confidenciou ao new york times. em relação ao dia 7 de novembro de 1991, ele sabe que venceu todas as probabilidades.

ana.c.camara@sol.pt