há quem sonhe em tornar-se personagem dos meus romances e há quem tenha insónias só de pensar que tal calamidade lhe pode acontecer. um dos homens mais importantes da minha vida, que me serviu de ‘muso’ durante quase uma década, chamava-me tsunami, e ele tinha as suas razões. é por estas e por outras que o meu próximo romance é só sobre gente morta.
escrever também é uma forma de poder, e o poder fascina os homens, ao mesmo tempo que os assusta. sherazade salvou a pele porque era uma boa contadora de histórias, mas a história do mundo sempre nos foi contada por homens. as mulheres oscilam entre as virgens, as mães devotas, as santas e as mártires, e as outras, que são as pecadoras, as devassas, as manipuladoras e as diabólicas.
maria é a rainha dos céus e da virtude, enquanto eva serve os interesses do diabo. madalena andou por maus caminhos, mas salva-se, escolhendo a redenção. salomé é uma grande peste. pandora abre a caixa que solta todos os males do mundo e helena acaba com o reino de tróia.
eu prefiro recordar a rainha santa isabel que transformou pão em rosas, joana d´arc pela sua bravura, ou a rainha d. maria pia que se ocupou dos órfãos. e tenho pena que camille claudel se tenha subjugado ao despotismo de rodin, e que tantos talentos se tenham perdido ao longo do tempo pelo medo que os homens têm das mulheres.
quando a grande escritora colette foi nomeada para membro da academia goncourt, alguns pares masculinos opuseram-se, alegando que os assuntos tratados nas suas obras não eram de interesse geral. ela escrevia sobre amores e desamores – que coleccionou como quem colecciona bules de chá – analisando as relações humanas com sinceridade, inteligência, estilo e ousadia, temas que à luz da sua época eram considerados menores.
ora, hoje todos sabemos que a origem da felicidade de cada um depende da nossa vivência pessoal. é a ela que vamos buscar a nossa inspiração e a nossa força. os escritores, poetas e dramaturgos que melhor compreenderam a natureza feminina, como virgílio ferreira, balzac, camões, shakespeare, tennessee williams, pedro paixão ou antónio alçada baptista, ajudaram a legitimar o universo feminino e a mostrar que o enfoque pessoal enquanto tema literário é tão importante como qualquer outro.
ainda que as mulheres escrevam e descrevam o mundo de forma muito diferente, a psicanálise já provou que os sonhos das mulheres e dos homens são os mesmos. acredito por isso que o inconsciente colectivo é universal e que os arquétipos do herói e do vilão não obrigam a um sexo. mas como disse michelet: «a mulher é a mãe da fantasia dos deuses. possui a segunda visão, as asas que lhe permitem voar até ao infinito da sua imaginação. os deuses são como os homens: nascem e morrem sobre o peito de uma mulher». talvez por isso os homens tenham medo de nós. porque voamos até ao limite da nossa imaginação, mesmo quando pensam que nos fecham numa gaiola.