A crise europeia e ‘Lo Scopone Scientifico’

As grandes culturas são aquelas em que é possível ver nas obras que produzem o espelho de uma época. Foi o que aconteceu com Homero, os filósofos e os trágicos gregos, com o período áureo de Roma, através da escultura, a História e os grandes pensadores, com a Renascença italiana, com a pintura e o…

e foi assim com o cinema no século passado. se alguém quiser conhecer o que foi o século xx americano basta ver o que foi o seu cinema.

o mesmo não aconteceu na europa, atravessada por duas guerras devastadoras que destruíram o talento e as oportunidades. apenas em três momentos o cinema teve, na europa, esse papel. o cinema alemão e soviético dos anos 20, o neo-realismo que surge das ruínas da ii guerra, e a nouvelle vague francesa, que antecipa o que viria a ser o maio de 68.

mas é o cinema italiano o que mais tempo se manteve na crista da onda: entre 1945 e o final dos anos 70, duas gerações de cineastas produziram centenas de obras-primas e deram-nos um retrato crítico da itália, como nenhuma outra cinematografia foi capaz durante tanto tempo. a partir dos anos 80, o cinema italiano entra em coma profundo, com o assalto ao poder de berlusconi, através da tv.

mas, dentro do cinema italiano, há um género que foi talvez o mais inventivo e o mais pertinente: a comédia. actores como totó, sordi, mastroiani, gassman, manfredi ou tognazzi, realizadores como steno, monicelli, risi, scola ou comencini, e uma mão cheia de argumentistas geniais deixaram-nos dezenas de filmes inesquecíveis, como miséria e nobreza, gansters falhados, a ultrapassagem, os monstros, a grande guerra ou feios, porcos e maus, obras-primas da comédia picaresca.

mas há um filme, menos conhecido, que fui rever, depois de assistir ao que se passa na grécia e vai acabar por alastrar a toda a europa: lo scopone scientifico, um argumento genial de rodolfo sonego, realizado por comencini. a história é simples: uma velha arqui-milionária americana (bette davis) passeia-se de avião e de rolls royce com o seu motorista-escravo (joseph cotten) pelos vários continentes, da américa do sul ao médio oriente, passando pelos bairros periféricos de itália, para satisfazer um capricho que lhe ocupa o tempo e satisfaz o ego.

empresta dinheiro aos pobres para que possam jogar com ela às cartas, alimentando-lhes a esperança de, com isso, poderem sair da miséria. o problema é que, servindo-se do facto de ter fundos ilimitados, quando perde, a velha obriga-os a jogar até à exaustão, acabando sempre por ganhar e deixando-os ainda mais arruinados. não revelo o final, mas adianto que é instrutivo. se eu fosse aos distribuidores, repunha já esta e outras comédias daquela época. ganhavam dinheiro e ajudavam-nos a perceber muita coisa.

apvasconcelos@gmail.com