Sobre a propriedade dos dados clínicos

A quem pertencem os dados clínicos? À pessoa em causa, à instituição de saúde na qual os dados foram obtidos, ou ao Estado? Em 2005 este problema encontrou uma solução jurídica em Portugal, através da Lei 12/2005, a qual, no seu artigo 3º, determina que «a informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados…

se os dados clínicos são propriedade da pessoa, então o corolário lógico desse conceito é que não devem ser utilizados sem o consentimento do seu titular, sobretudo se a informação em causa corresponder a doenças que não representem qualquer perigo para terceiros. o conselho da europa, através da convenção de oviedo, determina que “qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada no que toca a informações relacionadas com a sua saúde” (artigo 10º, ponto 1).

a informatização dos registos clínicos deve ter como objectivo a melhoria do atendimento aos doentes (ainda que em muitos casos tal melhoria possa ser modesta). a possibilidade de poder aceder a dados clínicos de uma dada pessoa fora da instituição na qual os mesmos foram obtidos pode ser útil e importante, por exemplo no contexto de acidentes de viação ou outros tipos de atendimento emergente. contudo, e para além da despesa muito significativa que os meios informáticos implicam, a utilização de meios informáticos para efectuar e conservar os registos clínicos apresenta como risco potencial a perda inadvertida do adequado grau de sigilo, tal como terá acontecido recentemente num hospital norte-americano. em suma, eventuais ficheiros clínicos de âmbito nacional só teriam interesse se estivessem disponíveis de uma forma relativamente generalizada, mas quanto mais generalizado for o acesso, maior será a probabilidade de existirem fugas de informação.

platão, na república, propõe a comunidade das mulheres, a comunidade dos filhos e de toda a educação, bem como a comunidade de ocupações. se estivesse vivo, talvez platão propusesse a comunidade dos dados clínicos de toda a população. não é essa, contudo, a perspectiva que corresponde ao conceito da propriedade dos dados clínicos ser de cada uma das pessoas a quem os dados dizem respeito. nesta perspectiva, a eventual inserção dos dados clínicos de uma pessoa num ficheiro de âmbito nacional deve depender da autorização da pessoa – autorização essa que cada pessoa, no gozo da sua própria liberdade, pode entender ou não conferir ao estado. citando lord acton, a liberdade não é um meio para atingir um fim político supremo, ela é em si própria o fim político supremo – e também neste caso temos que defender a nossa liberdade.

o sigilo médico é uma condição essencial para a prática de medicina, e os registos clínicos devem ser considerados propriedade da pessoa, que deles deve poder dispor. a apropriação colectiva dos dados clínicos não se apresenta como um objectivo adequado para uma democracia liberal, um tipo de regime no qual os direitos da pessoa incluem seguramente o direito à confidencialidade dos seus dados clínicos.

* professor universitário