almas masculinas dotadas de charme e de generosidade arriscam em afirmar com toda a convicção que não devo preocupar-me, porque fico sexy. obrigada cavalheiros. fazerem-me sentir que não perdi o sex-appeal atrás de aros de massa preta com lentes grossas é uma vitória, não sei é se corresponde à realidade. por isso uso-os só para trabalhar em casa, ou quando preciso de assinar documentos em ambientes sérios como notários, bancos, ou quando vou comprar livros.
quando era miúda, além de ter sido obrigada a usar óculos – cujas armações nos anos 70 estavam longe dos mínimos da estética e do design que vigoram nos dias de hoje – também me fizeram andar com uma espécie de pala de borracha, colada do lado de dentro da lente, durante alguns meses, porque tinha o olho direito preguiçoso. ao longo da vida, percebi que o meu lado direito era sempre o preguiçoso: além de algumas mazelas sem consequências, vim a saber, depois do episódio do avc, que as minhas artérias cervicais direitas são mais finas do que as esquerdas. isto faz-me lembrar a minha música preferida dos clã cuja letra repito em surdina há anos, o meu lado esquerdo é mais forte do que o outro, é o lado da intuição, é o lado onde mora o coração. de facto, o olho esquerdo vê melhor e mais longe do que o direito, e o coração vê melhor do que os dois, estejam eles abertos ou fechados.
serve o episódio de infância para explicar que, na quarta classe, eu era uma ‘caixa de óculos’ na variante de pirata involuntária, sem qualquer estilo ou panache; na realidade, eu era só mais uma miúda que precisava de usar óculos e botas ortopédicas por causa do clássico pé chato. e passava todo o tempo que podia a tirar os empecilhos e a escondê-los nos bolsos da farda e dentro da pasta. os óculos eram sinónimo de fraqueza e de ausência de beleza e faziam-me sentir invisível.
agora, sempre que ando de óculos na rua, também me torno quase invisível, o que passou a ser uma vantagem. o pior mesmo é o que eles representam. há mais de dez anos, quando escrevi o não há coincidências, os óculos na ponta do nariz para optar entre o salmão e os secretos, faziam parte da descrição de um personagem quarentão adorável. tinha então pouco mais de 30 anos; não conseguia imaginar que eu própria iria passar pelo mesmo. e eis que agora me encontro a teclar furiosamente, com os meus óculos postos.
não sei se lhe chame maturidade, ou se é mais honesto encarar isto como uma sinal de velhice, já que me sinto fresca que nem uma alface biológica de primeira linha, mas consolo-me com a ideia de que, enquanto o meu amor me for dizendo que fico sexy com eles postos, nada estará perdido.