ninguém morre de amor. por mais que doa, por mais que nos custe, por mais choros e gritos e murros na porta e pratos partidos e copos bebidos, ninguém morre.
uma pessoa sofre, fica com febre, mal da barriga, sem voz, com dores nas pernas, no peito e no coração, nas costas, no pescoço, na cabeça e na alma, mas não morre.
cada dia é um calvário desde o instante em que se acorda à hora em que o sono chega. pensamos que não temos fome, mas afinal comemos, pensamos que não conseguimos dormir, mas depois adormecemos, pensamos que não aguentamos mais, mas depois aguentamos, porque fomos feitos para aguentar, para resistir, para andar para a frente, mesmo olhando para trás, cada dia um bocadinho menos, até ao dia em que deixamos de olhar, de ver, de sentir, de pensar naquela pessoa.
a realidade é evolutiva – o que foi verdade ontem, amanhã já não é. alguém que foi tudo na nossa vida deixará de o ser. o absoluto relativiza-se, a realidade vigente desvanece-se, a vida acaba por mudar, e por nos mudar. sim, é verdade que amámos muito aquela pessoa, que sonhámos uma vida em comum, porque acreditámos que ela era ‘a tal’, mas temos várias vidas ao longo da vida; é apenas natural que possam existir várias pessoas que foram tudo durante um certo período.
esquecer alguém também é um exercício. ao fim de algumas semanas, uma pessoa acorda e já não pensa no outro. toma banho, bebe café, sai para trabalhar, tem três reuniões, vai almoçar, despacha assuntos, volta para casa, vê dois episódios do house e só quando se vai deitar é que se lembra de quem nos partiu o coração, nos fez a vida num inferno ou desistiu de nós. antes de fecharmos os olhos, pensamos que ainda amamos essa pessoa, mas isso faz parte do passado e o passado é um lugar estranho. não mora lá ninguém.
no dia seguinte retomamos a rotina, com o coração mais leve, às vezes mais triste por se sentir vazio, mas isso faz parte, porque sem luto ninguém se cura de um grande amor.
onde fica uma possível amizade no meio de tanta tristeza? não fica, porque não tem lugar. ou então adia-se durante 40 anos, quando formos velhinhos, «tu de bengala e eu de carrapito, na festa dos 70 anos do teu irmão ou no baptizado do neto de amigos em comum. eu vou olhar para ti e ver-te como tu eras quando te amei, tu vais olhar para mim e reconhecer a miúda de caracóis loiros que em tempos amaste». até lá, cada um segue a sua vida, como se o outro não tivesse existido, porque esse é muitas vezes o único caminho possível.
a amizade, nestes casos, só é possível quando nenhum dos dois quer desistir daquele amor. é uma máscara educada e politicamente correcta, um paliativo que não cura, porque a amizade é uma coisa e o amor é outra. e quando um grande amor se desfaz, pouco mais resta do que o ar que respiramos.
que nunca nos falte o ar, nem a vontade de o respirar, até que novos ventos nos tragam outra respiração.