que relevância tem, neste momento, chamar a atenção para um filme ou um livro, uma peça ou uma exposição?
mas talvez sejam precisamente os artistas e os intelectuais quem possa salvar a memória colectiva, denunciar estes tempos horríveis e voltar a mobilizar a comunidade para lhe resistir. no meio das pilhas de livros que se acumulam entre a minha secretária e a mesa-de-cabeceira a pedir desesperadamente que eu lhes dê atenção, calhou-me ficar preso a um livro de um notável escritor português, que os portugueses praticamente desconheciam, um dos muitos que teve que escolher a deambulação, a errância e o exílio, nesses tempos duros do salazarismo que temos tendência a esquecer e perdoar. trata-se de j. rentes de carvalho, cuja escrita pede meças aos grandes mestres da nossa língua e atinge por vezes a qualidade narrativa dos grandes escritores. página a página de qualquer dos seus livros, temos a estranha sensação de estar a ler um clássico. apesar de escrever há muito tempo, só agora começamos, graças à quetzal, a medir a dimensão e a importância deste escritor cosmopolita que, por isso mesmo, por ter vivido anos e anos no estrangeiro, melhor evoca, admira e exorciza o seu portugal, um país maioritariamente rural, com os seus encantos e os seus fantasmas, que ele olha com um misto de ternura e horror, que são as duas faces da compaixão.
comecei por ler a amante holandesa e passei avidamente (salvo seja) para os lindos braços da júlia da farmácia, um livro de contos (30 ao todo), que aumentou a minha admiração pelo autor. este último é um misto invulgar de efabulação e de crónica, de imaginação e de relato, de evocação e fantasia, os ingredientes com que se tecem as grandes ficções. num dos admiráveis contos (mas são todos admiráveis, cada um reinventando uma nova forma de narrativa curta), ‘a quinta de mobutu’, o autor confessa que, com uma grande preguiça de imaginação, simplesmente teceu um enredo em torno de elementos que lhe eram familiares.
volto ao princípio: nestes tempos em que o espectro da dissolução da europa paira sobre nós, em que o desabar da cultura humanista – que, no meio de tantas páginas negras, sempre nos salvou – , parece iminente, ler homens como este que, aos 80 anos, nos consegue fazer olhar o seu mundo, feito de memórias e de imaginação, com essa terna condescendência, que é o sortilégio dos grandes escritores, é um bálsamo que nos faz pensar que só a ficção nos salva da barbárie.
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