Mercearias fora de horas

Há mercearias abertas até mais tarde, que compõem a vida nocturna de bairros lisboetas e facilitam a vida aos que querem comprar algo a altas horas da noite. Três exemplos de lojas que sobrevivem na sombra.

ciência confirma que as grávidas têm desejos a altas horas da noite. mas também é certo que para os maridos não deve ser fácil encontrar sítios que vendam exactamente o que as amadas estão a precisar a desoras. com apenas algumas bombas de gasolina abertas noite dentro, o cenário continua a compor-se de pequenos negócios geridos maioritariamente por emigrantes, que sobrevivem à sombra das noites e se esforçam por manter as lojas abertas aos domingos e durante a semana até horas tardias. o sol percorreu as ruas de lisboa à penumbra para encontrar as ditas lojinhas.

suman pal e a mulher, sumana, são exemplo disso. vivem em portugal há 12 anos, vindos da índia – mas é ainda com dificuldade que se fazem entender, por entre monossílabos e frases curtas. no entanto, a sua amabilidade e simpatia encantam. são donos de uma mercearia que mora perto de uma das áreas noctívagas da cidade, na rua do sacramento a alcântara, bem perto de santos. mesmo ao lado, há um bar, onde se amontoam jovens à porta, a beber e a conversar.

no número 34, o casal recebe muitos moradores do bairro e jovens que ali se deslocam para comprar álcool antes de fazerem o caminho que passa a rua das janelas verdes até santos.

suman pal confessa ao sol que a maior parte dos problemas acontece à tarde e não à noite, como o senso comum faria pensar: «às vezes vêm aqui bandidos. mas à tarde. são rapazes mais novos… levam bolachas». não parece ofendido, relativiza este tipo de assaltos ao seu estabelecimento. para ele, naturalmente, os rapazes mais jovens que lhe tiram as bolachas das prateleiras e saem a correr querem apenas ter algo para comer.

a mercearia da rua do sacramento a alcântara vive muito dos moradores. um dos clientes que por ali costuma passar fala timidamente e sôfrego, enquanto tira do bolso uma nota para pagar as compras a sumana. diz que a existência de uma mercearia aberta até tarde no bairro «dá muito jeito». «venho aqui muitas vezes quando preciso de algo de última hora», adianta. logo sai a correr, com pressa de voltar a casa, que fica ali ao lado.

suman pal explica que há quem ali vá, mais tarde, comprar congelados. mas admite que «cervejas e vinhos» têm mais saída. talvez por venderem mais álcool, a garrafeira da mercearia está em destaque. sumana senta-se na caixa – atrás dela, a montra de bebidas preenche os olhos de quem passa.

percorrendo lisboa, é inevitável dar de caras com mercearias na zona da baixa. reside ali a maior concentração de mercearias abertas noite dentro, talvez pela vida nocturna associada a esta zona. a da rua do arsenal, curiosamente chamada super mercado, mantém-se aberta até às duas da manhã, todos os dias. as bancadas de frutas e legumes, ali à porta, contrastam com as cores do submundo que é o cais do sodré. ali, a decadência das vidas difíceis, do álcool que pisa a calçada, confunde-se com a variedade de frequentadores dos bares.

bananas e piri-piri no cais do sodré

entre intelectuais, artistas, emigrantes e turistas, há de tudo. apu kumar das, do bangladesh, manik bhowmik e ram kuman gosh, ambos indianos, convivem junto ao computador colocado na bancada da caixa. ficam desconfiados e surpresos com a nossa chegada. ouve-se um burburinho, uma conversa entre um homem e uma mulher, numa salinha isolada dentro do estabelecimento. apu tenta falar em espanhol, mas é a conversa em inglês que lhe permite explicar o que por ali se passa, quando os três, sós, estão na mercearia e recebem clientes até tarde. apu é o porta-voz do trio. «vêm aqui alguns portugueses, turistas e muitos emigrantes que moram perto, há muitos brasileiros», esclarece.

o número 108 da rua do arsenal compõe-se entre o colorido do piri-piri indiano e o amarelo das bananas penduradas em barras de ferro. os eléctricos passam à velocidade a que a vida corre no cais do sodré, numa rapidez vagarosa. os três merceeiros revelam ter algum medo de ali trabalhar, dado a hora ser tardia e por vezes haver confusões regadas a álcool naquela zona: «não nos sentimos seguros», dizem. tal como na mercearia da família pal, o que mais se vende àquela hora é «cerveja, whisky e vinho».

as garrafas ‘inundam’ o chão da rua. «algumas pessoas compram água e bolachas», revela o porta-voz, apu kumar das. vive em portugal há sete meses, chegado de londres. «até gosto de trabalhar aqui, mas os salários em portugal são muito baixos».

veio para portugal à procura de melhor. diz que quando chegou à mercearia as vendas eram muito superiores. agora, «o negócio está muito parado», reflexo da crise financeira. de facto, não entrou ali vivalma. na rua, turistas passam, olham de soslaio para as bancadas da fruta, mas continuam a caminhada em direcção à zona dos bares. nesta altura, cerca das 23 horas, poucos pés pisam a calçada da rua do arsenal. quem o faz caminha num andar desregulado, enquanto fala com os seus próprios botões. o tédio dos três merceeiros é flagrante.

a loja vende de tudo um pouco, desde as frutas aos congelados, detergentes e produtos de higiene pessoal. muita gente entra à noite para comprar tabaco e há quem ali vá para adquirir garrafas de bebidas alcoólicas a um preço baixo. estas mercearias podem não alegrar o olho, mas dão jeito a quem precisa de artigos de última hora.

gourmet tardio

na rua álvares cabral, passeiam-se idosas vaidosas, que por ali param para beber o seu café. muitos jovens sentam-se à mesa, põem a conversa em dia.

foi ali que nasceu a mercearia extra, parte de um projecto que pretende reinventar as mercearias de bairro – as lojas amanhecer, da empresa recheio da jerónimo martins. são mercearias gourmet, abertas até à uma e meia da manhã.

pedro mellert é o dono dessa mesma mercearia, perto do rato. «o produtor é a amanhecer. a ideia é ter sempre produtos dessa marca e depois produtos de marca líder. basicamente são iguais aos do pingo doce, mas com outra roupagem», explica.

é que se nas outras mercearias os produtos estavam dispostos numa espécie de caos ordenado, aqui há uma banca de jornais, uma tabacaria e um café, em que os bolos são quentes e o pão é do dia. tudo arrumadinho, mais apetecível e colorido.

antes da mudança de nome e de visual, pedro mellert geria, no espaço da actual mercearia extra, uma loja de conveniência. «as lojas de conveniência, em tempo de vacas gordas, são um negócio rentável. em tempo de crise não dá. vivem muito ou do álcool ou do tabaco», conta. revela que teve muitos problemas na altura em que vendia bebidas alcoólicas a preços mais baixos, por isso mudou a política da casa: «tive de mexer nos preços para não ter o pessoal da litrada aí a beber. ficava tudo no chão, aqui à porta. isto é um prédio de escritórios… depois de manhã a rua estava suja. os preços são relativamente baixos, mas o álcool, a litrada, está a 2,20€euros. aí, prefiro perder clientes, subi os preços. até as senhoras daqui tinham medo».

o público-alvo da loja também é outro. «pode aparecer um profissional liberal que saia do trabalho tarde, não tem nada em casa, se for preciso compra aí três ou quatro produtos de mercearia», exemplifica.

se antes vendia muito álcool e tabaco a horas mais tardias, pedro conta que esse cenário se modificou. «mudámos o conceito, fizemos a parceria com a padaria portuguesa, diversificámos o leque de produtos e já está a dar resultados. vendíamos 50% do tabaco à noite, agora vendemos 30 a 35%. à noite, produtos de mercearia saem muito».

a crise chegou para ficar. pedro confessa que, já antes de 2011, os comerciantes sentiram a queda nas vendas e que neste momento, aconteça o que acontecer às contas bancárias dos portugueses, pouco irá mudar para os trabalhadores do sector ao qual se dedica. «agora já não sentimos. a crise para nós começou em 2009. no início de 2010 bateu no fundo e desde aí que os valores de facturação se mantiveram».

reza a tradição que a maior parte dos merceeiros faz a sua vida no local de trabalho. no andar de baixo, a loja; no andar de cima, o lar. mas, com os que abriram as portas das suas mercearias, não é assim. tanto a família pal como os comerciantes da rua do arsenal vivem em zonas diferentes da cidade e acabam por ter de se deslocar para o trabalho todos os dias.

hoje os futuros pais não terão dificuldade em satisfazer os pedidos das mulheres grávidas quando são acordados de madrugada para comprar uma pizza ou um gelado. certo é, que à maior parte dos clientes, o que apetece mais pela caída da noite é tabaco e álcool. e esses não estão à espera da visita da cegonha, certamente.

sonia.cecilio@sol.pt