Das Duas Uma

E se os grandes poetas do século XX fossem os cantores?

refiro-me aos poetas que prolongaram a vocação da poesia romântica, que fabricavam utopias e punham os corações em alvoroço, que traçavam ideais e inspiravam revoluções: lamartine e vitor hugo, goethe e byron, antónio nobre e guerra junqueiro. no século xx, foram os baladeiros, os cantores de rua e de cabaré, os fadistas e os autores de tangos que prolongaram essa veia popular, lírica e anarquista, capaz de entrar no imaginário colectivo com versos acutilantes e rimas inspiradas. mas foi, sobretudo, na segunda metade do século xx, com o aparecimento do disco, que surgiram as primeiras gerações de cantores cujas audiências ultrapassaram os limites do palco e do cabaré e que se tornaram casos de popularidade que rivalizava com o cinema. brassens e ferré, em frança, mais tarde brel (que era belga) e gainsbourg; lennon e mac cartney, mick jagger e keith richards, em inglaterra, bob dylan, neil young e leonard cohen (sem esquecer o grande randy newman), jobim e joão gilberto, caetano veloso e chico buarque, para falar só dos mais duradouros. em portugal, o pioneiro foi zeca afonso, e, no meio de alguns cometas que ficaram pelo caminho, surgiu sérgio godinho, o último da geração francófona, que devia tanto aos cantores franceses como à nossa melhor poesia (de cesário a o’neil). a seguir a ele (e sem falar dos conjuntos e, entre todos, os xutos e pontapés), veio a dupla rui veloso/carlos tê (é impossível separá-los) e, por fim, jorge palma.

os cantores, como os cómicos, sobretudo os que ficam muito ligados a uma época, têm vida efémera. os que sobrevivem, são os que nos falam dos temas eternos que sempre inspiraram os poetas: o amor e a traição, a passagem do tempo e das estações, a solidão e a morte, a amizade e a aventura. no espaço de poucas semanas, sérgio godinho e jorge palma vieram dizer-nos que estão vivos e se recomendam, com dois novos discos de canções originais. em mútuo consentimento, canções como ‘a invenção da roda’, ‘em dias consecutivos’ ou as três últimas faixas (’vai lá’, ‘intermitentemente’ e ‘faz parte’), estão à altura do melhor repertório do sérgio godinho: o mesmo ouvido para as expressões do quotidiano, o mesmo lirismo disfarçado de ironia.

e, em com todo o respeito (‘neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso’, escreveu o’neil, cuja sombra tutelar paira sobre as canções de um e de outro), jorge palma assina alguns dos seus melhores temas, e não deixa de ser irónico que a inspiradíssima canção de abertura seja precisamente a confissão da dificuldade em parir uma canção (’página em branco’). devo-lhe uma das canções, ‘tudo por um beijo’, que ele escreveu para o meu último filme. mas todo o disco é uma dádiva, uma espécie de garrafa lançada ao mar, que, nós, simples ouvintes e pobres mortais, nestes tempos em que o mundo à nossa volta se afunda numa agonia sem rosto, teremos que lhe agradecer.

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