Das Duas Uma

Durante o Euro-2004, os portugueses elevaram consideravelmente os seus níveis de auto-estima, a que dantes se chamava amor-próprio.

a euforia, porém, durou pouco – até à derrota final com a grécia. mas a palavra ‘auto-estima’ passou a fazer parte do vocabulário corrente, ao ponto de um brasileiro amigo me ter perguntado se se tratava do nome de uma garagem ou de um stand de automóveis. com a consagração do fado como património imaterial da humanidade, o país voltou a vibrar durante uns dias. é compreensível. numa altura em que alguns dos instrumentos de soberania foram remetidos a bruxelas – que não os usa –, e muito do património material está a ser entregue a privados, em que os portugueses sentem que não mandam na moeda e que os governantes que elegem já não mandam na política, estas epifanias aquecem, por momentos, a alma lusa.

o fado (inseparável da guitarra portuguesa) é das coisas que mais me liga a portugal. tanto o fado tradicional, que não se afastou das raízes populares e da pureza melódica, que não saiu das casas de fado lisboetas e que se corporiza no genial marceneiro, como o fado a que amália, graças a alain oulman, deu asas para sair da estreita gaiola musical em que estava fechado, e voou para todas as partes do mundo, me comovem e impressionam.

o curioso é que as relações do fado, quer com a nossa inteligentzia quer com o regime, atravessaram fases de amor-ódio, que oscilaram em função do aproveitamento político que uma e outro dele tentaram fazer; e, depois do 25 de abril, foi preciso esperar pela morte de amália para que uma plêiade de jovens artistas lhe emprestassem a voz e dedicassem a vida. de origem popular, chegando mesmo a ter uma vocação anarquista durante a república, o fado começou por ser mal visto pelos sectores mais conservadores do regime, que o consideravam ‘decadente, fatalista e lascivo’, e o acusavam de contribuir para a ‘degenerescência da raça’. ao contrário do que se fez correr, a famosa trilogia ‘fado, futebol e fátima’ estão longe de terem sido aceites pacificamente pelo regime. como o fado, o futebol era visto com desprezo ou receio: o que o lado fascista do regime apreciava era a educação física, e o futebol, como o fado, o parque mayer ou a comédia, eram vistos como aglomeradores de massas, espectáculos de duvidoso gosto popular, potencialmente subversivos, e portanto perigosos para a paz social, feita de repressão e apelos ao conformismo. a popularidade internacional de amália e de eusébio foram feitas à revelia do regime. mesmo se não foi esse o entendimento da esquerda no pós-25 de abril, é duvidoso quem se aproveitou mais da popularidade do fado e do futebol: se o regime se a oposição. se me lembrar da importância da final da taça de portugal entre o benfica e a académica em 1969 e do rol de poetas oposicionistas que amália, pela mão de oulman, introduziu no seu repertório, eu diria que – felizmente – foi a oposição.

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