Limpar o coração

A minha mudança de casa apanhou-me na curva. Não, a minha antiga não ardeu nem sofreu uma implosão, nem fui obrigada a entregá-la no primeiro dia do mês a outra pessoa, apenas não cumpri a regra básica das grandes mudanças que é ver-me livre do lixo que acumulei ao longo dos anos.

mudar de casa sem limpar o arquivo morto é mais ou menos como entrar numa relação com a memória ainda dominada pela relação anterior. a memória é traiçoeira, vive e persiste para nos pregar partidas e fazer dançar na cabeça coisas que já não interessam, e não há nada mais perigoso do que uma caixa cheia de fotografias antigas para nos atirar para o país da nostalgia sem tempo de abrir o pára-quedas.

o passado é um lugar estranho porque não mora lá ninguém. passo a vida a dizer e a escrever isto, enquanto oiço o clássico de tom waits, ‘i don’t wanna grow up’, cantado pela mítica banda dos anos 80 que tinha lugar de honra na minha colecção de vinil, os ramones, tentando, com pouco sucesso, arrumar papéis antigos. releio cartas e postais, revisito concertos só de ver os bilhetes e divirto-me com crónicas publicadas há mais de uma década onde ainda me reconheço. é como ver o filme da minha vida a passar em câmara lenta: os meus pais mais novos, o meu filho de jardineiras e cabelo espetado, as minhas sobrinhas de bibe, o meu primeiro carro, as férias no brasil, méxico, belize, paris, nova iorque, algarve, a comporta quando ainda não estava na moda nem existia estrada de alcatrão até à praia, a minha existência em episódios dispersos e perdidos no tempo, cuja memória sentimental é muito mais forte do que a cronológica.

há pessoas de quem nunca me lembro e outras que nunca esqueci. há lugares que já desapareceram e no entanto são eternos, como o bananas ou o sansão e dalila, no bairro alto, que tinha anjinhos pintados no tecto. e outros, que se transformaram, sem terem perdido a sua alma original, como o hotel palace do capitão em s. martinho do porto, antiga casa dos meus avós, onde os verões eram eternos e passávamos os dias com o estômago forrado a cor-de-laranja por causa das litradas de tang, que enganavam a fome, misturadas com crises – uma frigideira com batatas fritas e ovo estrelado – ou as bolas de berlim que a cecília vendia na praia.

ainda no verão passado, ao ver uma reportagem sobre a minha praia de infância, dei por mim a chorar quando entrevistaram a filha da cecília que continua a vender bolos na praia e depois ri-me perdidamente, por me sentir tão sentimental.

deve ser a este tipo de parvoíces que chamam a ternura dos 40, mas eu não quero crescer, quero continuar a ouvir os ramones e os b-52’s e a saborear baked beans directamente da lata ao som dos madness que cantam ‘it must be love’.

devia ter arrumado a memória, agora sinto que tenho trabalho a triplicar. uma vez que mudo de casa sempre que não consigo mudar de vida, quero que esta me seja leve e solta, como a minha primeira. e como o meu primeiro amor, do qual guardo memórias que nunca se irão apagar.