Testemunho do mestre de Caxinas: Perdidos no mar

Na balsa, fui eu que quebrei o silêncio e falei primeiro. A minha preocupação era verificar o que havia lá dentro. Tínhamos água potável e pastilhas que eram suplementos que substituem a alimentação.

Dava para oito pessoas aguentarem dois dias. Nesse dia, tínhamos jantado por volta das 10 horas da noite. Comemos peixe cozido. Quem cozinhava era o ‘vareiro’, o meu primo João. Na balsa, tínhamos de racionar tudo. Por volta das cinco horas, lançámos o primeiro very light. Foi a dizer ‘precisamos de ajuda’. Nessa primeira noite, estava muito vento. Na segunda noite, ainda estava mais vento. A balsa nunca esteve estável. Andámos cerca de 30 milhas para Noroeste.

O segundo very light, lançámos já de dia; no primeiro dia, deviam ser umas 14h30. E os dois fachos na segunda noite. Usámos quando passaram navios por nós, mas eles passavam sempre. É uma angústia tremenda. Uma pessoa fica de rastos. Pensei ‘É incrível. Não há ninguém que nos veja?’ Quando usámos o último facho, virei-me para eles e disse: ‘meus amigos, agora, vamos ficar por nossa conta’.

A hora do pânico

O [Fernando] Maravalhas começou a entrar em pânico logo a partir do segundo dia. Estava desesperado. Só dizia que queria ir ao café. Nada do que ele dizia fazia sentido. Perdeu a noção de onde estava. Até dava vontade de rir às vezes, mas a certa altura já estava a pôr em perigo a tripulação toda.

A gente não sabia que ele tinha um problema. Nunca tinha acontecido nada assim antes. Ele esgatanhava o tecto da balsa todo e dava pontapés. Queria sair dali. Por muito que nos custasse, a única solução era amarrá-lo. Tive de lhe dar dois murros, mas foi para o acalmar e para o podermos amarrar. O problema foi que ele nunca mais acalmou. Depois, começou aos gritos dentro da balsa. Foi aí que o amordaçámos com uma liga. Essa noite foi uma noite de horrores. A terceira noite também. Foram noites de horror. Ele nunca mais parou. Já estávamos a ficar saturados com ele. Mais do que o tempo – que nós apanhámos mau tempo –, o maior perigo era ele. Nunca mais o desamarrámos. Era a gente que lhe dava as pastilhas e a água.

Durante os três dias, só fizemos chichi. Primeiro, eu abria a balsa e íamos à vez fazer para o mar. Depois, peguei nos saquinhos de água que iam ficando vazios e segurava para eles fazerem. Por causa do frio. Com o Maravalhas não havia hipótese e fazia mesmo dentro balsa. E nós íamos limpando.

Não tivemos fome nem sede, mas tivemos frio. A roupa ficava completamente encharcada. Antes de o sol se pôr, tirávamos a roupa para a torcer. Vestíamos novamente. Ficava na mesma molhada, mas mesmo era melhor. Passamos muito frio mesmo. Nisso, o edredão teve um papel importante. Acho que sem ele não teríamos sobrevivido.

O último dia foi o mais crítico, já tínhamos perdido a esperança. Não passava outra noite assim. Foi uma noite de temporal. Nessas horas, vem muita coisa à cabeça. Rezámos mais do que aquilo que conversámos. Eu rezava alto, eu rezo muito alto, e eles rezavam para eles.

Agora, dou mais sentido à vida do que dava há uma semana. Possivelmente, este ano não voltarei ao mar. Mas seguramente que lá voltarei, pois o mar é a minha vida».