conheci-o, em cannes, no início dos anos 70, depois de todos nós, cinéfilos, lhe termos perdido o rasto. com uma pala no olho, minado já pela gangrena mortal que o devorava, apoiado nos ombros de dois jovens alunos com quem havia realizado o que seria o seu último filme, you can’t go home again, nick passou desapercebido. e, além de mim e de um ou outro curioso, poucos foram os que ficaram na sala de conferências, onde, a um canto, disfarçado sob uma barba branca e um poncho mexicano, se sentava sterling hayden, o seu alter ego: johnny guitar.
nick foi o maior poeta do cinema e, sou tentado a dizê-lo, o maior e o mais genuíno dos autores. claro que há griffith, que inventou o cinema, keaton, que o tornou inteligente, ford, kazan, preminger, renoir, rossellini, ophuls, orson, mizoguschi, fellini, bergman. mas se ford é homero, e orson, shakespeare, nick é rimbaud. no dia em que soube da sua morte, escrevi: «ray foi o poeta da adolescência e, talvez por isso, tanto marcou a nossa. (…) desde os amantes da noite, seu primeiro filme, até à fúria de viver (…), quantos adolescentes mal-amados se revoltam nos seus filmes contra um mundo que traiu as suas promessas? todos eles se acomodam mal das mentiras dos adultos, suportam mal um pai que os desilude e tentam precocemente substituí-lo».
nick era rebelde, independente, senhor dos seus desejos, um autor total: em cada olhar (dizia que «o cinema é a melodia dos olhares») há um pedido de ajuda com uma pedra na mão. não há na história do cinema, numa época em que os estúdios geriam a carreira dos autores, filmes mais pessoais. e não deixa de ser o maior dos paradoxos, que ele tenha dito, em 69, perante uma plateia que o aplaudia no national film theatre, em londres, que os melhores filmes que fez (fruto de lutas e de compromissos com os produtores) «foram feitos dentro do sistema», onde encontrou os melhores técnicos e os mais dedicados que o ajudaram a materializar os seus sonhos, e que «a selva do cinema independente, com a sua multiplicidade de egos e a escassez de talentos, essa sim, era devastadora».
os críticos que há 30 anos andam a querer reescrever a história do cinema, pondo de um lado os maléficos produtores, que pagam os filmes, e, do outro, os artistas virtuosos que têm que suportar as suas exigências, deviam meditar nestas palavras. leiam the whole equation, de david thomson, que nos explica como o grande cinema viveu sempre dessa equação entre o dinheiro e a criação, entre a indústria e a arte, entre os produtores e os autores. e se a crise profunda do cinema europeu fosse, acima de tudo, uma crise de produtores, que os realizadores da minha geração se encarregaram, tragicamente, de diabolizar?
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