Das Duas Uma

Um leitor, que se afirma ‘católico praticante e papista convicto’, decidiu confiar na minha recomendação e foi ver Habemus Papam.

no email que me enviou, confessa que saiu da sala agradado mas perplexo – o mesmo que veio dizer a rádio vaticano. as cenas do volley, sobretudo, se reconhece que humanizam os cardeais, pareceram-lhe ‘apalhaçadas’, levando-o a pensar se não queriam traduzir a disputa das várias regiões do globo pelo papado. o filme de moretti, portanto, baralha, confunde e desconcerta, e estou certo que era esse o seu propósito.

devo declarar, antes de mais, que sou ateu, tal como nunca fui estalinista, o que não me impede de admirar os escritos e a vida de marx e de s. paulo. quem viu la messa è finita (de 1985) não deve estranhar que moretti se tenha interessado agora pelo vaticano. são duas obras-primas, em que, no seu tom inconfundível, ele nos ajuda a perceber o dilema da igreja: viver com o que chama ‘o mundo’ e as suas paixões, ou fora dele, exorcizando as tentações da carne e as perversões do espírito. o cristianismo convive mal com o prazer, sobretudo com o sexo. por isso, s. paulo tentou domesticá-lo pelo casamento e a igreja pelo celibato dos padres. ninguém, antes de shakespeare, percebeu melhor a natureza humana do que o cristianismo, tal como s. paulo o moldou: a humanidade é atraída pelo mal e só se salva pelo amor, diz-nos o arrependido de damasco. e se o cristianismo humanizou o antigo testamento ao tornar-se a religião do amor e do perdão, a verdade é que o vaticano afastou-o do mundo e fê-lo perder o sentido genuíno da fraternidade e da alegria. foi isso que rossellini nos disse, em dois filmes geniais e proféticos, francesco, giullare di dio (de 50) e europa 51. a alegria infantil dos cardeais a jogar volley, no filme de moretti, caro leitor, é igual à dos franciscanos no filme de rossellini. o sentimento incompreendido de piccolli, de não estar à altura da sua missão, em habemus papam, é igual ao da bergman no filme de rossellini. .

mas não é só essa alegria e essa compaixão que a igreja tem que recuperar, se quiser sobreviver nestes tempos desumanos. neste fim-de-semana estive na festa de natal que, durante três dias, a comunidade vida e paz, fundada em 1989 e tutelada pelo patriarcado de lisboa, organiza na cantina da faculdade de letras de lisboa. é admirável o trabalho dessa legião de voluntários que procuram todos os dias recuperar os desesperados e tirar da rua os sem-abrigo – numa altura em que a sociedade, pelo contrário, está a criar todos os dias novos pobres e a lançá-los para a rua. mas, nestes tempos horríveis, a igreja tem que fazer mais: tem que escolher o seu campo; não pode tolerar que o deus em que acredita abandone as suas criaturas à voragem do lucro e ao desprezo dos poderosos. o que lhe falta é aquilo que pasolini atribuiu ao seu cristo no evangelho segundo mateus: a capacidade de enfrentar o mundo de césar, a audácia de se revoltar.

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