a força que rege as relações amorosas não é só o amor. há muitas outras que entram no jogo, algumas nem sequer de forma inconsciente, entre elas a inércia, o conjunto de ideias preconcebidas do que pensamos ser o amor, o património de traumas que todos carregamos no lombo e sobretudo o medo: o medo de não sermos correspondidos, de darmos mais do que recebemos, de falharmos, de perdermos o encanto para o outro, de ficarmos outra vez sós, como estivemos antes.
há várias formas de superar o medo. há quem faça fugas para a frente e se atire de cabeça para a piscina sem sequer ver se está cheia, há quem assista à sua vida de camarote para nunca perder a perspectiva e há quem dê um mergulho e saia logo a seguir, que é o mesmo do que deslizar à superfície das coisas.
eu prefiro experimentar se a água está fria com a ponta do pé, enquanto estudo a situação e tento perceber se aquele mergulho que tanto desejo é ou não bom para mim. talvez por isso me considere uma mergulhadora, mas das cautelosas e sem garrafa de oxigénio, porque ficar lá no fundo dá-me claustrofobia e além disso não se trata de uma actividade desportiva recomendada a cardíacos. mergulhar sim, mas sem escafandro, só de barbatanas e de óculos, para não confundir alforrecas com anémonas, nem tubarões com golfinhos.
é bom mergulhar. amor é mais do que outra dimensão, é a dimensão mais desejada, por isso, entrar nela é como voar sem sair do mesmo lugar. quando mergulhamos e nos deixamos ir, quando perdemos o medo, então não há nada que se compare à soma de sensações e de sentimentos que misturam bem-estar com alegria e prazer com felicidade. amar e ser amado não tem comparação com nenhum outro sentimento e as pessoas mais felizes são as que reconhecem e valorizam as diferentes formas de amor, entre as quais a amizade ocupa um lugar de honra.
quando mergulhamos sem ir ao fundo ou quando deslizamos à superfície dos sentimentos, é fácil fazer a transição de uma paixão para uma amizade, ainda que esta tenha sido intensa, carnal, estonteante e avassaladora. o pior é quando formos mesmo ao fundo do fundo da dor, da tristeza, da desilusão e do abandono, quando o outro, que representou tudo para nós, deixa de ser quem era, ou como era, ou simplesmente desaparece. o outro, que foi tudo, agora é nada e a realidade que com ele vivemos deixou de existir. o mundo como o conhecemos antes mudou, já não é mais o mesmo, e nunca mais voltará a ser. nestes casos drásticos, apenas as atitudes drásticas resultam; é preciso cortar pela raiz, arrancá-la sem deixar vestígios e não olhar para trás.
quem já passou por uma destas aprende rapidamente a patinar, deslizando à superfície, sem se deixar apanhar na teia. ainda que caia algumas vezes, levanta-se e continua a dar voltas ao ringue, até aprender a não cair. a vontade de mergulhar pode voltar, a par com o medo. mas mergulhar é preciso, porque sem entrega nada se faz bem feito e, afinal, para se amar bem tem de se saber dobrar o medo. quem não ama demais é porque nunca amou o suficiente, mesmo que isso nos custe alguns dissabores.