terminado o curso, foi para a tropa.
fui fazer a recruta a tancos. tive muita sorte, era uma escola prática. não era mafra, que tinha uma recruta dura. nós éramos todos engenheiros/cadetes e tratavam-nos muito bem.
mas sabia que o seu destino seria áfrica?
na altura começou a haver a ideia de que muitos iriam para angola, mas não se pensava que seria um número tão grande como acabou por ser.
tinha medo de ir?
não era bem medo da guerra. era consciência de que algo se passava nas colónias que precisava de ser mudado. estando a haver massacres em angola era preciso criar condições de paz para encontrar soluções. calhou-me a mim ir e pensei: ‘se me calhou a mim ir, vou e gere-se a partir daí. o casamento fica para depois. vamos fazer o que é nossa obrigação’. tive muitos colegas que foram para paris, para a suíça…
nunca pensou nisso?
nunca. não vinha a propósito. tanto uns como outros ajudaram a encontrar uma solução.
no seu íntimo achava que a independência das colónias era inevitável?
teria de haver, na medida em que havia nativos em angola e moçambique. cabo verde e são tomé não tinham nativos, portanto não tinham de ser independentes.
sabia que ia para uma guerra perdida…
não era perdida porque tinha noção de que o exército poderia refazer um clima de paz para procurar soluções – a administração colonial não conseguia dar a volta sozinha. não tinha de ser necessariamente a independência. podíamos estabelecer regras de autonomia para que os nativos pudessem, uma vez que já havia boas condições para educar uma elite, governar aquele território. quando vejo que isso não é possível? quando vou para a guerra e vejo as primeiras pontes de betão destruídas com fogueiras, água e à picareta. destruir betão à custa do processo de aquecimento/arrefecimento é prova de um grande empenho e convicção. aí passei a achar: ‘ou vem já a autonomia e a libertação ou vamos ter guerra por muito tempo’.
como viveu o lado real e duro da guerra?
são cenas horrorosas. são imagens com que tenho de viver, mas durmo bem. temos de enquadrar isso num momento de grande dificuldade. mas nunca senti pânico.
chegou a pensar que podia morrer ali?
em qualquer altura podia acontecer. levei um tiro na cabeça, segundos depois de ter posto o capacete. o meu comandante tinha uma preocupação obsessiva que era avançar o mais depressa possível. nesse dia, andámos muito, mas anoiteceu rápido. assim, acabámos por não fazer acampamento. dormi sentado na cabine da camioneta entre dois furriéis. a certa altura, somos despertados por tiroteio. como sempre, a engenharia ia à frente, porque tínhamos de abrir os caminhos. quando isto começou, o furriel elídio disse: ‘meu alferes, ponha o capacete’, que estava aos meus pés. assim que pus o capacete levei um tiro na cabeça. a pancada foi tal que disse: ‘devo estar ferido’. tiro o capacete, que estava amolgado, mas nada de mais. o elídio não disse nada, o reguengo (o outro furriel) disse que quem estava ferido era ele. o tiro fez ricochete e tirou a vista e um bocado do músculo do ombro desse meu furriel reguengo. foi o equivalente a ver as cabeças espetadas nos paus, porque olhei para ele e era só sangue. mas sobreviveu.
trouxe o capacete consigo?
o capitão teimou que não devia entregar o capacete e que devia até levá-lo para o casamento, mas mandei-o ‘pentear macacos’. hoje tenho pena de não o ter… se não fosse o capacete teria lá ficado! de então para cá, não há um momento especial na minha vida que não partilhe com o elídio.
a relação com os soldados não foi sempre tão positiva. chegou, aliás, a dar uma bofetada a um deles…
o facto de eu não usar armas – um homem da engenharia não trabalha com armas – inspirava respeito por parte dos meus soldados… o que aconteceu foi que estava a ser feito um interrogatório a um prisioneiro e estavam a ser tontos. chamei os meus e mandei-os formar – que era a melhor maneira de os pôr na ordem – e nessa altura houve um rapaz que fez um comentário para o lado, achando que podia brincar com o facto de eu os retirar da valentia de estarem a torturar um prisioneiro, dizendo: ‘o nosso alferes é fraquinho’. levou um tabefe, de que não me arrependo.
acabou a sua comissão e ficou a trabalhar em angola. nessa altura vivia-se melhor em luanda do que cá?
sim. tive uma sorte enorme porque me deram os portos e a ilha de luanda. a minha mulher tinha o salário dela e comprámos um vw em segunda mão e no fim do mês poupávamos. aos fins-de-semana jantávamos fora, passeávamos. fomos equipando uma moradia e no segundo ano tínhamos uma casa composta. era bem tratado, mas sentia que não estava a fazer a minha vida correctamente. já tinha motorista, jardineiro, casa própria, com um estatuto e uma vida muito superior aos meus colegas que cá estavam.
acabou por regressar a portugal, ao porto, em 1965.
um administrador da empresa moniz da maia e vaz guedes – com quem vim a ter o primeiro conflito accionista no bcp – convidou-me, no hotel universo, em luanda, para a obra que estava a fazer no porto de leixões e que era dirigida pelo joão vaz guedes, tio do diogo. falei com a assunção, que achou bem, e viemos. tive uma grande despedida no aeroporto, o que mostra que as pessoas eram amigas umas das outras.
quando acontece a primavera marcelista, acreditou que o regime iria democratizar-se?
tive dúvidas de que fosse possível, até porque havia o problema das colónias. marcelo caetano nunca devia ter ido a angola, porque ficou comprometido no sentido de nada alterar. a solução do problema das colónias já não passava por ele; ele já não era capaz de resolver as coisas. mas portugal estava a melhorar economicamente, os bancos estavam a ser importantes, com subsidiárias nas colónias. as coisas podiam ter sido diferentes.
antecipou o fim do regime?
mais tarde ou mais cedo aconteceria, não tinha dúvidas. não pensei é que fosse tão mal feito e tão confuso.