‘O dr. Salazar não gostava da Madeira’

Desde quando começou a dar atenção à Igreja?

chegou a ser acólito?

nunca. minha mãe não gostava nada daquelas senhoras que passavam a vida na igreja porque ela não tinha tempo para isso! tinha um colégio para gerir. não era nada dessas coisas. nunca fui acólito, mas sei rezar a missa. os meus pais eram anticlericais, não misturavam as coisas. quando o meu irmão quis ser padre, minha mãe quis que ele fizesse o liceu e só depois disso fosse para o seminário. e as minhas avós também não eram nada complicadas. a igreja, para mim, nunca foi um colete. nunca foi uma limitação.

mas sempre presente?

graças a deus!

o curso de engenharia era um sonho de pequeno?

na altura parecia-me bem por que tinha pessoas conhecidas que estavam a tirar engenharia civil. significava fazer coisas. a opção pela parte de hidráulica – onde estive dez anos – já foi por acidente. tinha a ideia que ser engenheiro era uma coisa que daria valências para a vida.

desde criança que tinha essa visão de construir um futuro?

não. vivia o dia-a-dia. não pensava muito no futuro. se tinha um exame na sexta-feira, estudava em cima da hora. dizia que uma cadeira não resistia a um mês de estudo. e procurei sempre não ser só estudante. sempre me empenhei noutras coisas, como festas de finalistas e coisas ligadas às conferências de são vicente de paulo. na universidade era muito activo na vida académica. tinha atenção à política, mas nunca andei a conspirar, nunca distribuí folhetos.

sentia-se confortável com o regime?

não. sabia que o regime não era correcto, tinha lucidez para isso. o dr. salazar não gostava da madeira. ficámos muito contentes, por exemplo, quando um madeirense assumiu o cargo de governador civil – antes era sempre uma pessoa do continente. e, como estudante, lembro-me muito bem das reacções que tivemos com um decreto que saiu do ministro leite pinto que alterava alguns direitos de autonomia da universidade de coimbra e da associação académica.

a sua primeira intervenção política foi ainda na madeira, sobre a invasão de goa, antiga colónia portuguesa.

a mensagem, no fundo, era dizer que goa era portuguesa e que estavam a entrar em portugal. teria uns 17 anos. não sei exactamente o texto, mas saiu no diário de notícias. correu bem, não me agrediram. mas não éramos nenhuns tontos. o regime vivia também de gente boa que o serviam e que o dr. salazar geria bem.

lembra-se da primeira vez que se cruzou com salazar?

foi em lisboa. o dr. salazar, nos últimos anos, não recebia a comissão central da queima das fitas – da qual eu fazia parte como tesoureiro. mas num ano lá conseguimos ser recebidos. lembro-me bem do gabinete no palácio de são bento. tinha uma secretária, um sofá comprido, e por detrás do sofá havia um biombo – nós dizíamos que ali devia estar o homem da pistola, da pide. foi uma conversa com enfoque nas coisas reais. ele virou-se para mim e disse: ‘já sei que a queima este ano tem um orçamento grande, complicado… contratar uma orquestra do estrangeiro… a queima resolve-se com umas gaitas de foles’. ele sabia que tínhamos estado no cabaret maxime e tínhamos contratado uma orquestra. lá dei a minha explicação, disse que as coisas tinham evoluído, que o baile era de gala. ele aceitou, mas deixou uma recomendação: ‘não deixem a academia de coimbra ficar com mau nome, façam as coisas bem feitas e não deixem dívidas’. foi a primeira vez que se fez um relatório e contas da queima das fitas. e terá sido a primeira vez que tudo foi pago, sobrou dinheiro e criámos cinco bolsas para o ano seguinte para os melhores alunos.

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