A brigada do camarote

Uma das minhas séries preferidas da infância foi Os Marretas, a anos-luz das animações por computador e dos épicos em 3D, um bando de bonecos de pano animados com vozes extraordinárias e pequenos sketches de ir às lágrimas que incluíam o simpático sapo Cocas, a incontornável Miss Piggy, o urso Fozzy, um cão pianista, um…

deve ter sido com esse par de bonecos de pano que comecei a interiorizar o conceito da brigada do camarote.

quem pertence à brigada do camarote nunca perde a capacidade de ser um espectador da sua própria existência, mesmo que a realidade o apanhe com um tsunami. ver a vida do camarote implica disciplina, objectividade e um fortíssimo sentido de auto-ironia: é como estar dentro e fora de cena ao mesmo tempo, sem nunca perder a mão nem o pé. requer treino mais do que vocação, e vontade mais do que desejo, porque quando a onda vem e nos puxa para um lugar qualquer que não conhecemos o primeiro reflexo é deixarmo-nos ir.

uma amiga minha que foi apanhada no tsunami da tailândia em 2004 relata a experiência com serenidade. ela acredita que quando a onda a levou não teria sobrevivido se tivesse tentado resistir ao impacto. deixar-se ir na vida em algumas coisas pode ser um bom caminho, a dificuldade está em sabermos distinguir em que momentos nos devemos deixar ir e em que momentos devemos resistir, tomar a rédea dos acontecimentos, virar o tabuleiro ou desviar o curso das águas.

quer a onda seja de euforia, de vitória, paixão e plenitude, ou de abandono, raiva e tristeza, um dos truques para lhe sobreviver é não sair do camarote. deixar sempre um espaço para a objectividade. aprender a relativizar. treinar o raciocínio para certos conceitos como ‘isto já me aconteceu’, ‘eu já passei por pior’, ‘toca a todos’, ‘há coisas mais graves na vida’, ‘amanhã será melhor’. a capacidade de nos perdermos e nos fundirmos não deve nunca superar a faculdade de manter a distância olímpica.

citando a sábia agustina bessa-luís, numa entrevista que li há mais de dez anos, «apoia-te sempre, nunca te agarres». o friso do camarote, juntamente com um amigo próximo que serve de grilo falante e que está sempre ao nosso lado, são o suficiente para não cairmos em cima da plateia. até porque só quem está de fora é que vê as coisas como elas são. a realidade é sempre ilusória, pois paira sobre ela o véu do desejo. nós vemos o que queremos ver. o camarote permite-nos ver de longe e identificar coisas que, sob a cegueira dos nossos sonhos, nunca conseguiríamos enxergar.

é aquilo a que os norte-americanos chamam the whole picture. aprender a ver de longe, mesmo quando estamos no centro do vulcão, custe o que custar, para nosso bem.