Afeganistão: As ‘burca boxers’

Ali, onde os talibãs mutilaram, chicotearam e assassinaram em público homens e mulheres, durante o seu reinado de terror no Afeganistão, de 1996 a 2001, o Estádio Ghazi, em Cabul, voltou a servir os seus intentos iniciais – a prática desportiva.

e é também ali que se faz história no país. não apenas história do desporto, mas de coragem, valores, reivindicações, justiça e paz. nas instalações do recinto, treina desde 2007 a primeira equipa de boxe feminino do afeganistão, cerca de vinte jovens que, entre jabs, directos e uppercuts, abrem caminho à força de punhos e muita perseverança, numa sociedade que ainda as ameaça e onde mulheres e crianças são vítimas fáceis. na equipa fighting for peace (lutando pela paz), duas atletas sobressaem – as irmãs rahimi. é nelas que o afeganistão deposita esperanças de uma medalha olímpica, nos jogos de londres.

é difícil escapar ao simbolismo. são mulheres, que às mãos dos talibãs perderam os direitos mais fundamentais (da liberdade de expressão aos cuidados de saúde, da educação ao emprego, para não falar no desporto e no uso obrigatório da burca), que treinam em ghazi, que assumem o poder da sua força física. na mesma cidade em que, anos antes, eram condenadas à morte por adultério, um crime, segundo a interpretação talibã da lei islâmica, ainda que fosse uma violação. «é assustador quando se pensa nisso. à noite, tenho medo. parece assombrado, sangue inocente foi derramado aqui», explica à cbs shabnam rahimi, 19 anos, atleta sobre a qual recaem as maiores expectativas, e que não presenciou esses tempos: a família tinha fugido para o irão.

orgulho e ameaças

foi ela que trouxe, do tajiquistão, uma medalha de ouro, tendo a irmã sadaf, de 18 anos, conquistado a de prata. em maio, competem no campeonato do mundo em chonqing, na china – torneio que servirá para qualificar pugilistas femininas para os jogos olímpicos de londres.

essa é a meta. «as afegãs apenas são conhecidas por serem oprimidas e pobres. irmos às olimpíadas é poder orgulhar o afeganistão e mostrar ao mundo que existimos», diz shabnam à cbs.

«temos muitos problemas. aqui, no afeganistão, as pessoas pensam que devemos ficar em casa, sem ir à escola e nunca fazer boxe», conta a benjamim sadaf à nbc. e foram mais longe, como recorda a irmã shabnam à reuters: «há dois anos, alguém telefonou ao meu pai e ameaçou raptar-nos ou matar-nos se continuássemos». os treinos foram interrompidos durante um mês, até o treinador assegurar o transporte das atletas. toda a preparação física limita-se ao ginásio.

a luta é diária. as jovens chegam tradicionalmente vestidas, cobertas com o hijab, mas, à medida que o treino avança, entre saltos, corridas e murros, o véu desliza, os cabelos ficam a descoberto – e cada vez mais se parecem com qualquer outra desportista, ainda que usem calças em vez de calções. o cenário, sim, destoa: quatro sacos apenas, na cave do estádio, no ginásio poeirento de vidros partidos, forrado de finos colchões sobre o chão de cimento.

«recebemos um dólar por dia, por cada atleta. o que podemos fazer? o equipamento deixa a desejar, não temos condições para treinar como os outros», queixa-se o treinador saber sharifi à nbc. os poucos apoios são dados pelo comité olímpico e pela ong cooperation for peace and unity. mas nada disto tem impedido que a história da equipa de boxe feminina seja contada.

um realizador fascinado

ariel nasr é meio americano, meio afegão, e foi criado no canadá. autor do documentário good morning kandahar (2008) – sobre jovens afegãos que vivem no canadá e vêem a missão da nato no seu país de origem à distância –, o realizador quis filmar uma história no país. «quando soube desta equipa de boxe, fiquei fascinado», lembra ao sol, em entrevista por email. durante mais de um ano, acompanhou as jovens – «é como se fossem minhas irmãs» – e testemunhou, em filme e em pessoa, a sua perseverança. «talvez o maior problema seja que a equipa não tem acesso a um ringue. por isso só têm contacto real com as condições nas quais devem competir quando vão a torneios. isso torna ainda mais impressionante o facto de terem começado a vencer», relatou.

the boxing girls of kabul (as raparigas pugilistas de cabul) foi a forma encontrada por ariel nasr de contar a história das jovens. o documentário, produzido pelo instituto nacional do filme do canadá, estreou-se em novembro de 2011 no idfa, festival internacional de documentários de amesterdão. segue-se o circuito internacional de documentários, com submissão prevista para a edição de 2012 do doclisboa.

segurar nas rédeas do destino

nas filmagens, ariel pôde perceber melhor as questões com que se debatem estas jovens, ainda dependentes dos pais. «todas as raparigas da equipa já foram pressionadas para pararem com o boxe, seja por alguém da família, por um professor, um vizinho, até um estranho. há uma enorme pressão para as mulheres se conformarem à norma», conta ao sol.

conciliam o corão com o desporto. e sentem a quase imposição de se casarem. uma promissora atleta, que ariel ainda filmou, shala sekandari, estava no bom caminho para as olimpíadas. depois casou-se e abandonou o boxe. o realizador cita a mãe das rahimi para atestar alguma mudança de mentalidades: «se elas não se casarem, o boxe será o seu marido».

shabnam e sadaf marcaram o documentarista. «são miúdas corajosas, determinadas, brilhantes e íntegras. têm a atitude necessária para serem campeãs, se lhes forem dadas as oportunidades», acredita.

com as rédeas do destino nas mãos, apesar das dificuldades, estas burca boxers, como já as apelidaram, podem ser as primeiras mulheres a levar uma medalha olímpica para o afeganistão. do currículo do país consta apenas uma, de bronze, conquistada por rohullah nikpai nos jogos de pequim, em 2008, na modalidade de taekwondo. tornou-se um herói nacional. e elas? mesmo que falhem, nunca perderam de vista, mais do que o boxe, o direito a escolherem o seu próprio futuro.

ana.c.camara@sol.pt