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com a mãe homenageou a sua mãe. noutros álbuns tem canções dedicadas aos filhos e agora apresenta a montanha mágica, um regresso à infância. para si, fazer música obriga sempre a trabalhar memórias pessoais?
julgo que sim, apesar de não pensar nisso quando estou a fazer música. quando começo, nunca sei qual é a minha inspiração no momento. na maior parte das vezes vou compondo intuitivamente, reunindo ideias, e só depois é que percebo o que estou a tentar fazer, quais são as ligações pessoais. com a montanha mágica também foi assim.
que montanha mágica é esta, então?
primeiro que tudo foi um título muito controverso. grande parte dos meus amigos achava muito mau ter o mesmo título do livro do thomas mann, mas eu e o pedro oliveira [produtor] defendemo-lo até ao fim. apesar de ser uma grande contradição, porque foi feito numa planície, no alentejo, acho que o título reflecte o espírito do disco. aquela montanha mágica, imaginária, serviu para que, do alentejo, conseguisse ver o mar da ericeira, o mar da minha infância. funcionou como um espaço de inspiração, de viagem ao passado, para compor e sonhar.
sonha muito?
gosto de acreditar que é sempre possível concretizar as coisas que desejamos, mas a infância é uma zona de conforto constante. especialmente porque tive uma infância muito feliz, com os meus irmãos.
por ser o irmão mais velho havia uma responsabilidade acrescida?
havia. eu é que tinha, por exemplo, de levar os meus irmãos à escola. na altura era muito novo, tinha uns nove anos, e tinha sempre a preocupação de lhes dar a mão para atravessar a rua e esperar por eles para regressar a casa.
como foi a vossa educação?
muito liberal. a partir dos seis, sete anos, brincávamos tranquilamente na rua. a minha mãe achava, inclusive, que era importante andarmos na rua e termos contacto com todo o tipo de gente. essa liberdade foi boa para nós.
tinha regras quando saía para brincar?
só quando comecei a sair à noite é que os horários apareceram. comecei a sair aos 13 anos e às duas da manhã tinha de estar em casa. isso manteve-se até aos 17 anos.
guarda muitas memórias de infância?
as férias grandes na ericeira eram muito especiais. o mar da praia do norte teve uma presença grande no meu crescimento e, por isso, a primeira canção deste álbum tem esse nome. mas há outras referências, como o tema ‘baloiço’ ou ‘aviões de papel’, onde faço uma viagem até ao tempo das brincadeiras com os meus irmãos. acho que sempre houve um lado infantil nas minhas músicas e neste disco isso ainda está mais presente.
inicialmente era para ser só instrumental. como apareceram as vozes?
quando estávamos quase a terminar as gravações percebemos que havia ali temas que tinham de ser cantados. experimentámos uma música com o thiago petit, um cantor brasileiro novo que estava em lisboa na altura, e funcionou muito bem. fizemos o mesmo com ‘terrible dawn’, cantado por scott matthew, um cantor australiano de que gosto bastante. a voz em ‘hipernauta’, que fecha o disco, surgiu mesmo quando já estávamos a acabar. é o miguel filipe, dos novembro, que também fez a ilustração da capa.
nunca sentiu vontade de arriscar a sua própria voz?
não sou lá muito afinado. mas quem sabe um dia… não é uma coisa que esteja totalmente posta de parte.
disse que nenhum dos seus amigos gostou do título a montanha mágica. tem essa necessidade de mostrar aos amigos o que está a fazer?
sim. eles gozam imenso comigo porque sabem que, quase sempre, tenho a certeza do que vou querer, mas pergunto na mesma. não tenho vergonha nenhuma de mostrar logo, desde cedo, o que estou a fazer. faço isto desde criança, mesmo quando sei que as coisas estão uma porcaria. não sou nada perfeccionista e, por isso, a ajuda do pedro [oliveira] e do tiago [lopes] é fundamental.
são amigos de infância?
sim, são amigos de longa data. a começar pelo pedro oliveira, que conheço desde os seis anos, quando fui viver para o bairro das estacas.
com ele criou os sétima legião. que idade tinham?
com 12 anos começamos a interessar-nos por música. mas mais do que a música, queríamos fazer coisas juntos. foi na música, mas podia ter sido no cinema.
por que a música falou mais alto?
havia um grande fascínio pelo que se fazia na altura, nos anos 70. o rock progressivo, os genesis, os pink floyd. além disso, quando andava no liceu, a minha madrinha ofereceu-me uma guitarra clássica. na altura, havia um programa na rádio comercial, do jaime fernandes, que se chamava dois pontos, onde passavam os álbuns na íntegra e eu tocava guitarra por cima do que estava a ouvir. durante um ano, ainda tentei aprender com aulas particulares, mas nunca fui muito disciplinado.
e o piano, como surgiu?
havia um piano no liceu dona leonor e eu estava fascinado com aquele instrumento. não fazia ideia de como se tocava, mas nos intervalos das aulas ia para lá improvisar. levava sempre um gravador que os meus pais me tinham oferecido no natal para registar tudo o que fazia.
chegou a ter aulas de piano?
não, nunca tive e nunca aprendi a ler uma pauta. fui aprendendo à medida que ia tocando com os meus amigos. senti várias vezes que devia ter apostado na formação, mas como acabei por criar um universo próprio essa necessidade de aprender era abafada pelas coisas que estava a fazer. como nunca tive vergonha de mostrar as minhas coisas, fazia como achava que devia ser e depois pedia a alguém que já sabia para me ajudar.
onde praticava?
no início era em casa dos meus pais. juntava um grupo de amigos e lembro-me que levava muito a sério esses encontros.
como os seus pais viam este interesse?
eles até me encorajavam a compor. principalmente a minha mãe. ela adorava música e ouvia imensa coisa em casa. por isso achava piada eu estar a tentar fazer música com os meus amigos e até nos ajudava a dar nomes às canções. foi ela que me chamou a atenção para o mundo da música, da poesia e da literatura. levava-me a concertos na gulbenkian e íamos muito ao cinema juntos.
sente muito a falta dela?
sim, naturalmente. ela sempre foi uma grande fonte de inspiração e como gosto de sentir que estou a fazer música para a partilhar com as pessoas que me são mais próximas há, obviamente, muita saudade. mas essa necessidade e facilidade em comunicar não herdei da minha mãe, mas sim do meu pai.
essas canções que faziam em casa dos seus pais já se assemelhavam ao início da sétima legião?
na altura cantávamos em inglês e a nossa música tinha muito a ver com o som que gostávamos, bandas como os joy division e os echo and the bunnymen. só começámos a cantar em português depois de termos participado num concurso, no início dos anos 80, que se chamava a grande noite do rock. foi nesta altura que surgiu o nome sétima legião. éramos três, ainda pensámos em terceira legião, mas não nos soou nada bem e mudámos para sétima. ficámos em segundo lugar e o joão gobern fez um artigo a falar bem de nós. a partir daí começámos a ter alguns contactos com o pedro ayres magalhães, que vivia perto de nós, e o ricardo camacho, que mais tarde produziu o nosso primeiro álbum, a um deus desconhecido, e também fez parte do grupo. eles tinham uma editora, a fundação atlântica, com o miguel esteves cardoso, e queriam que cantássemos em português. só ao fim de um ano é que nos convenceram com ‘glória’, que foi o nosso primeiro single, com letra do miguel esteves cardoso.
foi por esta altura, com 16 anos, que começou a sair para o bairro alto. o frágil foi logo o lugar de eleição?
não vim à inauguração, mas na altura em que o frágil abriu já vinha muito para o bairro alto, a vários bares e tasquinhas. mas o frágil tornou-se rapidamente no sítio mais in do bairro alto. vinha todas as semanas, sempre com um grande grupo de amigos. no início fomos barrados muitas vezes, mas ao fim de um ano já nos conheciam e deixavam-nos entrar. ficávamos até fechar e queimávamos sempre a semanada que os nossos pais nos davam. depois íamos a pé para casa. do bairro alto até à avenida de roma.
por que preferiam o bairro alto a outros locais de lisboa?
porque o frágil era o sítio onde se concentravam mais músicos, escritores e artistas. cheguei a ver aqui o antónio variações. para nós, que estávamos no auge da adolescência, havia muita curiosidade pelas pessoas que frequentavam o frágil, com as suas roupas excêntricas e esquisitas. era um fascínio entrar aqui. havia uma atmosfera de modernidade muito grande. a primeira vez que vi dois homens a beijarem-se foi aqui.
a homossexualidade era um tabu?
não era um tabu, mas ainda era uma coisa secreta. nunca tive preconceitos, mas não era uma coisa que via no meu dia-a-dia ou no liceu. no frágil passei a encarar a homossexualidade de forma natural.
também se vestia de forma excêntrica?
nem por isso. gostava de preto e andava sempre de gabardine. mas mais do que a roupa, o grande fascínio era vir para falar dos livros que estávamos a ler, dos filmes e dos nossos sonhos com pessoas interessadas nas mesmas coisas que nós.
esses sonhos levavam-no até onde?
para mim o sonho era mesmo gravar música. era o optimista do grupo e conseguia sempre fazer com que acreditassem na sétima legião. acho que nunca perdi essa característica.
estar no meio da elite cultural de lisboa reforçava esse optimismo?
sim, para uma banda como a nossa, que estava a começar, era importante sermos aceites ali. mas não sentimos nunca que estávamos a fazer uma coisa que ia pertencer à história da música portuguesa. fazíamos o que gostávamos sem sequer nos preocuparmos se íamos ter êxito ou não.
hoje é sócio do frágil. como aconteceu?
foi por acaso. quando conheci a minha mulher, aqui no frágil, ela já era uma das sócias. um dia um dos outros sócios quis sair e eu entrei.
amor e negócios vão bem de mãos dadas?
às vezes não é fácil porque o bairro alto tem-se ressentido imenso nos últimos anos e está a atravessar uma fase muito má. as pessoas bebem na rua e isso está a dar cabo de muitas casas. os horários também não ajudam nada. quando uma casa não se paga a si própria, para continuar aberta, são os sócios que têm de entrar com o dinheiro. actualmente somos três sócios – eu, a minha mulher e uma amiga – e não queremos deixar a casa morrer. mas tem sido difícil. por isso, enquanto esta crise não passa, decidimos, a partir de janeiro, abrir apenas quando há eventos marcados.
hoje ainda aprecia a noite?
sim, gosto muito. claro que agora só saio moderadamente, mas gosto de jantar fora, comer bem e depois ir beber um copo com os amigos. é um momento de partilha muito especial. nos últimos 13 anos é aqui no frágil que, de 15 em 15 dias, recebemos os nossos amigos.
é uma segunda casa portanto?
sim, o frágil e o alentejo são duas coisas muito importantes. preciso desse contraste na minha vida. a cidade e o campo. do frágil guardo o contacto com muita gente, a vontade de fazer coisas e a energia de quem está a começar. no alentejo é onde posso relaxar, pensar sobre a vida.
voltando aos anos 80, estava no auge da adolescência quando vinha para o frágil. esse fascínio pelas coisas diferentes que estava a viver levou-o a experimentar muita coisa?
acho que nós éramos dos mais bem comportadinhos. por muita liberdade que houvesse, não tínhamos espaço para loucuras de drogas e coisas assim.
mas experimentou as suas coisas?
claro, como todo o adolescente. o normal. mas sempre tive muita consciência das coisas. não eram necessários sermões.
e houve muitas bebedeiras?
sim, cheguei algumas vezes bêbedo a casa. mas nem foram tantas assim, porque como íamos a pé para casa elas passavam entretanto. as ressacas de domingo é que eram complicadas. eu e o meu irmão passávamos o tempo todo a chamar pela minha mãe para ela nos trazer copos de água gigantes. numa primeira fase ela até fingia que não percebia.
sempre lhe deixaram fazer o que quis?
sim, mas houve ali uma altura, quando deixei o curso de direito, que os meus pais não ficaram nada contentes. eles apoiavam a minha paixão pela música, mas insistiam que tinha de tirar um curso.
por que escolheu direito?
porque todos os meus amigos estavam em direito. rapidamente percebi que não tinha nada a ver comigo e ainda mudei para relações públicas e publicidade, mas também só frequentei uns meses. na altura já tinha a sétima legião e estava a começar a madredeus, com o pedro ayres magalhães.
não ponderou áreas mais criativas?
tinha um grande fascínio por cinema e pensei várias vezes em concorrer ao conservatório, mas nunca cheguei a concorrer. quando decidi dedicar-me só à música sabia que podia ser muito efémero, mas sempre fui um pouco inconsciente em relação a isso. independentemente do futuro, queria fazer aquilo e se depois tivesse que ir trabalhar para um banco, ou para um café, ia. cheguei a trabalhar um ano numa casa de hambúrgueres. desde que estivesse a fazer música não me importava de fazer outros trabalhos para sobreviver.
que outros trabalhos teve?
inscrevi-me naquelas empresas de trabalho temporário e fiz várias coisas. uma vez trabalhei como estafeta num banco, mas o primeiro emprego que tive foi aquele que mais odiei. estar na copa de um bar, durante quatro horas, a lavar copos. durou dois dias porque desisti logo. acho que foi mesmo a pior experiência laboral que já tive.
esse dinheiro que ganhava era para investir na música?
não. era para vir para o bairro alto, para os copos [risos]. a minha primeira guitarra baixo comprei-a com algum dinheiro que ganhei com estes trabalhos, mas a grande maioria era para sair.
na noite conheceu o pedro ayres magalhães e as primeiras conversas sobre a madredeus aconteceram no frágil. por que quis avançar com o projecto quando já tinha a sétima legião?
a madredeus nasceu da vontade que tínhamos em fazer coisas diferentes da sétima legião e dos heróis do mar. uma música mais acústica, menos pop. começámos a tocar juntos em 1986 e aquilo dava-nos um prazer enorme. estivemos um ano à procura de uma cantora e depois apareceu a teresa [salgueiro]. quando a conhecemos ficámos encantados com o talento dela.
tanto com a sétima legião, como com a madredeus sentiu que estava a participar em projectos que iam marcar a música portuguesa?
não, de todo. nós queríamos era tocar. não fazíamos a mínima ideia se íamos vender discos, se íamos ser conhecidos ou dar concertos. até porque, no início, tanto a sétima legião, como a madredeus não fizeram muito sucesso. só ao fim de quatro, cinco anos, com mar d’outubro, é que a sétima legião deu um salto significativo. antes éramos uma banda de culto, vendíamos mil lps. e com a madredeus foi a mesma coisa. só em 1991, quando demos uma série de concertos na bélgica, na europália [grande exposição dedicada à cultura portuguesa] é que começámos a ter o reconhecimento internacional e a tocar pelo mundo inteiro.
o que guarda dessa experiência?
era cansativo, mas muito enriquecedor. sentia que estávamos a viver de facto coisas fascinantes, independentemente de estarmos a dar, ou não, algum contributo para a música portuguesa. antes não viajava nada. a primeira vez que andei de avião foi, precisamente, com a madredeus. uma viagem pequena do porto para lisboa.
qual foi o primeiro sítio que o impressionou?
frança. paris é aquela cidade muito romântica e cosmopolita, mas o interior francês também é impressionante, tudo muito arranjadinho. depois gostei muito da bélgica e da holanda. mas uma das viagens da madredeus que me marcaram mais foi à coreia do norte. estivemos 10 dias em pyongyang, num festival muito grande da juventude dos partidos comunistas do mundo inteiro.
ganhou esse prazer de viajar ou só viaja a trabalho?
gosto de viajar, mas também gosto muito de voltar a casa. a minha mulher é assistente de bordo e gosto imenso de a acompanhar, mesmo que seja só ir e voltar. não me importo nada, por exemplo, de ir a nova iorque jantar e voltar no dia seguinte. não me custa nada porque estar com a minha mulher é um prazer.
abandona a madredeus em 1994, na rota ascendente da banda. porquê?
porque percebi que queria seguir um caminho diferente.
mas a madredeus não nasceu exactamente por esse motivo?
sim, mas no início da década de 1990 comecei a compor músicas que também não cabiam na madredeus. a influência clássica das músicas que ouvia em casa dos meus pais, o violino, o violoncelo, começaram a cativar-me. só nesta altura é que aquilo que a minha mãe me punha a ouvir em criança começou a fazer sentido. quando gravei o primeiro disco a solo, ave mundi illuminar, em 1992, não pensava deixar a madredeus, até porque estava no auge. só em 1994 é que percebi realmente que queria sair. estava a fazer cerca de 70 concertos por ano com a madredeus e tinha muito pouco tempo para compor, que era o que gostava realmente de fazer. e depois nem sequer sentia que estava a evoluir como músico. tocava coisas muito simples e queria outros desafios.
apostou num trabalho virado para a música clássica, e nesta altura já vivia por sua conta. a nível financeiro não o preocupou ficar desapoiado?
não. intuitivamente percebi que precisava de ser fiel ao que queria fazer.
não ficou viciado nos aplausos que a madredeus obteve?
os aplausos são viciantes, não vou mentir, mas não me deixei cegar por isso. sabia que estava a fazer uma música menos comercial e, por isso, tinha de construir calmamente o meu caminho. gravava os discos, dava 10, 15 concertos e parava logo. só em 2000, com o alma mater, é que comecei a fazer mais concertos. fiz duas canções que se tornaram populares, o ‘pasión’ e ‘a casa’, e houve uma aproximação maior ao público. passei de 10 para 40 concertos.
a colaboração com adriana calcanhotto ajudou ao sucesso. previu isso?
o alma mater foi o disco de viragem, mas já não me lembro por que decidi convidar a adriana e a luna pena. depois de trabalhos mais intimistas, onde a influência de compositores como o philip glass ou o michael nyman eram tão fortes, houve, inconscientemente, um regresso às canções.
alma mater iniciou também uma lista de colaborações de peso. como surgiram?
convidei sempre pessoas que admiro, mesmo que eles não fizessem a mínima ideia de quem eu era. quando enviei uma cassete para o ryuichi sakamoto não o conhecia de lado nenhum e nunca acreditei que ele aceitasse. quando ele respondeu que sim fiquei radiante. lembro-me que parecia mesmo uma criança de tão contente que estava.
por que gosta tanto de ter convidados?
são uma mais-valia em todos os sentidos. e depois porque não tenho nada a perder, mesmo quando eles não respondem.
teve muitas negas?
sim algumas. a cesária évora, o caetano veloso… fico triste, mas passa-me depressa. rapidamente penso noutras pessoas para convidar e noutros projectos para fazer.
alexandra.ho@sol.pt