O sonho ao lado

Entrar numa casa onde já vivemos e que está agora vazia é como viajar no passado e não conseguir ver mais do que imagens difusas e confusas, perdidas numa existência que já não nos pertence.

os espaços esvaziados são como corpos sem alma, tristes e sem esperança, muito mais tristes do que os espaços vazios à espera que alguém os encha de vida.

durante sete anos vivi naquela casa com vista para o mar, perseguindo um sonho que julgava ser o certo para mim. agora, sempre que tenho de lá voltar, sinto o peso de um projecto não realizado, o mesmo peso que sentia quando lá vivia e que foi a principal razão que me fez deixar aquele lugar e escolher outro mais urbano, mais central, mais real. aquela era a casa que eu comprei quando sonhava que voltaria a casar-me e teria mais filhos, um ideal de vida que afinal nunca se realizou.

a casa é linda, a vista para o mar é de cortar a respiração, o jardim é acolhedor e, no entanto, virei-lhe as costas sem saudades.

as casas em que vivemos não são muito diferentes das relações que temos: elas têm de nos servir, como nos servem umas calças, nem demasiado grandes, nem demasiado pequenas, nem muito frias nem sufocantes de tão quentes, nem escuras nem demasiado claras. tal como uma relação se constrói, uma casa também se vai fazendo aos poucos, e todos os pormenores contam, desde as cortinas aos candeeiros, passando pelas almofadas e pelas toalhas de mesa.

uma casa bem cuidada revela um espírito dedicado, disciplinado e metódico. uma casa desarrumada e descuidada é quase sempre habitada por uma mente desorganizada, egoísta e confusa. quando entramos numa casa, conseguimos adivinhar o espírito que a habita. os obsessivos compulsivos têm colecções, os melómanos têm paredes forradas a discos, os intelectuais têm livros espalhados por todos os lados, as mulheres que vivem sós acumulam um número excessivo de almofadas, os alcoólicos amontoam vasilhame na marquise, os desportistas têm uma passadeira, etc.

as nossas casas são as nossas radiografias e tomamos conta delas da mesma forma que gerimos as nossas relações amorosas; quem é exigente, autoritário e disciplinador consigo mesmo e com os outros, tem a casa impecável. quem vive no caos e na confusão é vago e cultiva o deixa andar nas relações.

voltando à casa agora fechada e vazia à espera que outra família a restitua à vida, consigo perceber por que nunca fui feliz lá dentro: era um projecto que teimava em cumprir um sonho ao lado. afinal, de que nos vale um sonho de vida a dois se os dois não sonharem igual? talvez um dia tenha saudades daquele lugar idílico rodeado de verde e de azul, mas a conversa das árvores e o bater das ondas lá ao fundo nunca me aqueceram os pés.

às vezes é preciso saber trocar um sonho pela realidade, sob risco de nos perdermos dentro do nosso próprio labirinto. como disse dumbledore, mestre de harry potter, «one must not dwell on dreams or he forgets to live».

os únicos sonhos que valem a pena são os que se tornam realidade.