Das duas uma

No passado dia 18, Carlos Cruz apresentou o seu novo livro, Inocente Para Além de Qualquer Dúvida, no Teatro Villaret, um teatro com uma enorme carga simbólica e sentimental para o ex-‘Senhor Televisão’.

já conhecia o livro e a catadupa de provas que cruz foi obsessivamente recolhendo para sua defesa, nestes anos de cativeiro, tortura psicológica e marginalização, um processo que tenho acompanhado com incredulidade e indignação. fiz questão de estar presente, como muitos outros amigos, entre conhecidos e anónimos. mas devo esclarecer que não o apoio por ser seu amigo, mas por ser amigo da verdade e da justiça (sim, com maiúsculas), por um imperativo cívico a que não me podia furtar. nem o faço por uma questão de «fé na sua inocência», o que valeria tanto como «acreditar na sua culpa». não há nada mais aterrador do que as conversas de autocarro em que se comentam estes casos com base na fisionomia ou no preconceito. apoio carlos cruz porque todo o processo, desde a investigação ao julgamento, para além da, muitas vezes, despudorada cobertura mediática, está inquinado e constitui uma mancha desmedida e aterradora na justiça portuguesa, que compromete a credibilidade do regime democrático. se não estivesse em causa a vida de um homem, destruída para sempre pela suspeição, que mesmo a absolvição nunca poderá lavar por completo, diria que este é um case study, uma daquelas histórias de terror que, transformada em filme, roçaria o inverosímil, porque, como o próprio cruz reconhece, é difícil perceber quem está por trás disto, e porquê. lendo a copiosa informação que o livro recolhe, fica a sensação absurda de que é um processo que se desencadeia pela histérica pressão dos media (a tv precisa de sangue e de más notícias), misturada com alguma vontade de protagonismo, e que ninguém, depois, consegue travar.

cruz é investigado por uma suspeição sem provas, e depois preso no algarve, em fevereiro de 2003, porque o investigador que o ‘perseguiu’ afirmou no relatório e em tribunal que tinha a convicção de que ele «ia a fugir», uma inadmissível presunção de culpa que, por si só, deveria ter feito parar todo o processo. sete anos e sete meses depois, cruz é condenado a sete anos de prisão por três crimes, baseando-se os juízes apenas na convicção de que há nos testemunhos contraditórios de alunos e ex-alunos da casa pia, feitos em interrogatórios que desrespeitaram todas as regras (entre outras, não foram gravados porque «obrigava a muitas cassetes e depois a transcrever», a data inicial dos alegados factos foi alterada para «um dia indeterminado», etc.), uma «ressonância de verdade», e porque o réu, numa presunção de culpa que é um atentado ao princípio básico do direito, «não mostrou arrependimento»!

como no ‘caso dreyfus’, em que zola estabeleceu para sempre a responsabilidade do intelectual, este livro devia ser lido e comentado por todos os que têm voz nos meios de comunicação. ao lado deste, o processo de kafka é um conto para crianças.

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