Dentro e fora da nuvem

De cada vez que nos apaixonamos, tendemos a não ver os defeitos do outro, ou aquilo que vulgarmente é designado pelo seu lado mau. Esta é uma das coisas que torna a paixão patética; uma pessoa não cega, mas quase.

às vezes a pior pessoa do mundo pode ser a melhor, se acreditarmos no que os nossos sentimentos dizem. perante casos perdidos, nos quais o bom senso é engolido pela paixão, o melhor é fazer apelo aos sentidos mais básicos, porque esses nunca se enganam. bem lá no fundo da nossa consciência sabemos os defeitos que o outro tem, apenas não os queremos ver, ou simplesmente não nos importamos.

love is not blind, we see but we don’t mind. nada como a língua inglesa para tornar as coisas simples. andamos a flutuar na nuvem e a sensação é tão inebriante que adiamos o mais possível sairmos dela.

o pior vem depois, quando essa parte do cérebro que temporariamente bloqueou recupera as capacidades e acorda para a vida. e com ela vêm o sentido crítico, a noção de ridículo e aquela sensação de levarmos uma chapada da realidade de mão bem cheia. em vez de vermos estrelas, vemos os defeitos do outro, todos o que sabíamos que já existiam e que nos recusávamos a ver, e mais uns quantos que nem sequer tínhamos visto.

não foi o outro que mudou, foi a nossa percepção sobre ele que se alterou. já vi homens ficarem mais baixos, mais velhos e mais gordos de um momento para o outro: eles na realidade não mudaram – o meu olhar em relação a eles que modificou.

a saída da nuvem não tem necessariamente de ser má: aprender a olhar para o outro vendo-o como ele é, com os seus defeitos e as suas manias, essa sim é a grande aprendizagem do amor. passamos da fase encantada na qual dizemos «eu gosto dele porque tem estas e aquelas qualidades» para a fase realista: «eu gosto dele, apesar deste ou daquele defeito». o truque está em continuar a gostar da outra pessoa vendo-a como um todo, com coisas boas e más, melhores e piores.

os casamentos duradouros que conheço assentam em grande parte na capacidade de cada um aceitar os defeitos do outro e de saber viver com eles. infelizmente, tenho conhecido mais mulheres com esta capacidade de aceitação do que homens, mas eles também existem, também lutam e também conseguem. o amor conjugal não é igual ao amor passional e quem pensa que consegue manter o espírito de montanha-russa num casamento, não sabe o inferno que o espera. também conheço casais que vivem na vertigem das relações profundamente passionais, com todos os seus altos e baixos, mas já estão todos separados, ou por um fio que pode e vai rebentar a qualquer momento.

é bom olhar para o outro e só ver perfeição. é mau quando saímos da nuvem e os defeitos abafam tudo à volta. é uma prova de inteligência emocional encontrar o equilíbrio entre os dois opostos a que a nossa percepção nos leva. e não vale a pena apontar o dedo e ordenar ao outro que seja diferente. até pode ser que ele deixe de fumar por nossa causa, mas a sua natureza nunca vai mudar, nem dentro nem fora da nuvem.