segundo os relatos próximos à época, d. pedro era um caso complicado: epiléptico, gago, insone, bissexual, dado a excessos de folia e profícuo em actos de crueldade gratuita. perante tal quadro de miséria, a tentação de imaginar inês como salvadora da sua alma atormentada revelou-se quase irresistível.
a ideia recorrente do papel redentor que as mulheres têm na vida dos homens deve ter germinado no meu espírito quando, com dez ou 11 anos, li a biografia de florence nightingale, fundadora da enfermagem moderna. o retrato da capa mostrava uma mulher de tranças enroladas e presas por uma austera touca, toda ela muito vitoriana, exalando virtudes de boa rapariga. florence foi também uma matemática excelente com conhecimentos de estatística, além de escritora. ficamos então tentados a imaginar uma senhora generosa, afável e dedicada ao próximo – e talvez até o fosse –, mas com pouco respeito pelas mulheres, cuja condição de quase natural subjugação aos homens a chocava.
na verdade, florence desprezava as mulheres e, embora tenha mantido relações fortes com algumas, preferia a companhia dos homens e referia-se a si própria no masculino, como um homem em missão.
se florence não foi afinal o ‘anjo da crimeia’ , fruto de uma construção social do romantismo inglês, mas uma mulher severa e irascível com o seu género, o que poderemos pensar de inês de castro? gosto de a imaginar complexa e com tantas qualidades quantos os defeitos, mas hoje, à luz da distância, vejo-a cada vez mais como um mulher inteligente, calculista e manipuladora, capaz de acalmar e de seduzir aquele homem lábil e intempestivo. não tivesse inês de castro tais capacidades e é pouco provável que resistisse à presença do infante na sua vida, ou que este não se aborrecesse com ela.
esta crónica não é sobre o maior mito do amor em portugal nem sobre a fundadora da enfermagem moderna, mas apenas a inflexão de uma crença antiga que, com o tempo e a vida, foi enfraquecendo no meu espírito.
já não acredito no papel redentor das mulheres na vida dos homens por duas razões: a primeira é porque as mulheres que já vi e que ainda vejo nesse papel raramente conseguem resultados fiáveis a longo prazo, e a segunda porque acredito que os homens quase nunca gostam de ser ajudados, razão pela qual raramente pedem ajuda. a compulsão natural feminina para os proteger pode ofendê-los e ser prejudicial a uma relação. afinal, não somos mães deles; assumir esse papel só pode ter consequências: ou perdemos a admiração que temos por eles e/ou eles perdem o élan que sentiam por nós e tomam-nos por garantidas. amar também é proteger, mas convém não exagerar.