Das duas uma

O anúncio da falência da Kodak, ao cabo de mais de um século a fornecer a película para a esmagadora maioria dos filmes que são hoje o património do cinema, não é um acontecimento menor.

é mais um sinal de uma mudança de civilização sem precedentes desde a revolução industrial. mas as revoluções que decorrem dos progressos técnicos, como foi a descoberta do motor a vapor, conduzem sempre a profundas convulsões sociais: sem essa revolução, que criou a classe operária e induziu o triunfo do capitalismo, não haveria marx nem engels, nem teríamos assistido às violentas revoluções que assolaram a europa no séc. xix e no começo do séc. xx.

a globalização, a revolução digital e a mutação radical das fontes de energia, são uma revolução só comparável à que surgiu em inglaterra em meados do século xviii, e cujos efeitos brutais inspiraram a obra de dickens e o manifesto comunista; os efeitos que a civilização ocidental está a sofrer têm uma dimensão maior e mais vasta do que os que conduziram à grande depressão. nenhum progresso se fez alguma vez sem custos e os grandes progressos fazem-se, portanto, com custos desmedidos, como lembrou marx, que assegurava que a história é uma sucessão de partos dolorosos. se os economistas, que tomaram conta do palco, soubessem um pouco de história, ter-nos-iam poupado quer às políticas cegas da u.e., quer ao patético protagonismo que assumem todos os dias nas televisões.

o fim da kodak e o triunfo do digital, ou como diria negroponte, a transformação de um mundo de átomos num mundo de bytes, não são episódios facilmente assimiláveis, como parece; fazem parte de uma revolução gigantesca, que não se fará sem custos brutais e sem riscos incontroláveis, como os que teve a revolução industrial no mundo do trabalho. para falar apenas dos efeitos sobre as imagens em película, é verdade que o digital permite o armazenamento e o acesso a um número quase infinito de filmes e documentos audiovisuais, sem constrangimentos sensíveis de espaço e com uma considerável economia de tempo e de processos. mas é simultaneamente uma dupla e assustadora ameaça: à conservação dos filmes e às possibilidades quase ilimitadas de manipulação. um dos perigos das cinematecas, por exemplo, é o de descurar a conservação dos originais em película, uma vez assegurada a transcrição digital, cuja duração se desconhece e que obrigará à migração permanente para novos suportes até à sua possível degradação.

o outro perigo é a assustadora capacidade de manipulação: estaline foi capaz de eliminar trotsky e os seus inimigos das fotografias, mas a impostura era detectável e fácil de provar. com o digital, a história pode ser reescrita sem deixar traços, feita à conveniência dos diversos poderes: apagar, acrescentar, deslocalizar, tudo pode hoje ser feito, de forma indelével, através do photoshop. a partir de agora, a memória fabrica-se.

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