Corações e donuts

Sou a favor de efemérides para que nunca nos esqueçamos do que é realmente importante, como o Dia Internacional da Mulher, o Dia Mundial da Criança ou o Dia do Coração.

mas nunca percebi como é que nós, que já tínhamos um santo casamenteiro na nossa tradição, aceitámos um outro, importado, que nada tem a ver connosco, o tal valentim. os brasileiros, mais orgulhosos da sua herança cultural de raiz portuguesa do que os próprios portugueses, festejam os namorados no dia de santo antónio – que é o que nós devíamos fazer.

festejar o dia dos namorados como se fosse uma data especial soube-me sempre a falso, porque uma pessoa ou ama ou não ama, ou está apaixonada ou não está, ou tem uma relação ou não tem. e não é uma efeméride que lhe vai alterar o estado de alma.

quem gosta de viver apaixonado não é infeliz se o seu amor não for correspondido; é infeliz se, durante um período da sua vida, não se conseguir apaixonar por alguém. o amor também é uma droga – porventura a mais poderosa e duradoura de todas as drogas – e quem é viciado em amor sofre tanto num período de ressaca quanto sofre um adicto em fase de desintoxicação, isto é, muito.

mas também há aqueles para quem o envolvimento físico e emocional é uma espécie de desporto: homens e mulheres conseguem viver meses, e até anos, em jogos amorosos sucessivos, como se a vida fosse uma eterna feira popular – «agora vou dar uma volta na roda gigante, a seguir passo pelos carrinhos de choque, depois ando no comboio fantasma e compro três voltas na montanha russa». e, entre tirinhos e farturas, os anos passam, com alguns momentos de algodão doce pelo meio – metáfora para as aventuras inconsequentes, porque o algodão parece sempre imenso, mas desfaz-se na boca com demasiada facilidade. desaparece em três tempos e deixa-nos quase sempre uma leve sensação de enjoo.

já não sei quantas vezes falei aqui na minha teoria das relações aplicada à feira popular: quando estamos solteiros podemos experimentar todas as atracções, porque a um determinado momento apaixonamo-nos e então o melhor é não voltar a entrar no recinto lúdico. no entanto, à luz do tempo, vejo as coisas de forma diferente: hoje, acho que o melhor é passear pela feira sem grande entusiasmos e escolher com critério e cuidado as aventuras, para correr poucos riscos.

as fases da vida sem um par devem ser vividas com paciência e serenidade, evitando excessos. e não vale a pena insistir na busca da cara-metade, até porque esta nunca aparece quando queremos, mas apenas quando ela quer, ou quando a vida assim se organiza. no entanto, às vezes, ela está ali mesmo ao nosso lado, tão perto que nem a vemos. e, nesse caso, nem sequer vale a pena ir à feira, porque se há alguém que gosta de nós, também não anda na feira à procura de outras pessoas.

seja em que caso for, convém olhar para o outro e tentar ver se debaixo das costelas existe mesmo um coração que bombeia o sangue em forma de donuts, porque, no segundo caso, as setas do cupido passam sempre para o outro lado, perdendo-se no desconhecido de um vazio estéril e egoísta. em tempos de poupança, há que saber guardar as preciosas setas para corações de carne e de alma e não para os outros, feitos de algodão doce que é a matéria dos amores fugazes. para esses casos, não há santo que ajude, nem antónio nem valentim.