o nome de truffaut, e estas duas frases, vieram-me à memória várias vezes quando vi a invenção de hugo e o artista, duas obras-primas inesperadas, que são outras tantas homenagens à magia do cinema primitivo, numa altura em que a kodak foi à falência e o cinema deixou de ser o que fora, no século passado. truffaut tinha uma paixão pelo cinema que lhe vinha da infância, como ele evoca no seu primeiro filme, les 400 coups, e que o levou a inventar a palavra ‘cinéfilia’, esse fascínio pela sala escura onde, durante hora e meia, nos podíamos esquecer do mundo real e viver intensamente as aventuras (dramáticas, exaltantes, comoventes) de seres que nos pareciam ‘maiores do que a vida’, num estado de hipnose perto do sonho, que nos fazia admirar a generosa coragem dos heróis e a beleza incandescente das mulheres.
é esse fascínio, esse deslumbramento de adolescente, que scorsese recupera no seu último filme, a invenção de hugo, e de que, de outro modo, nos fala também esse filme surpreendente, o artista, assinado por um realizador de quem sabíamos pouco até agora: michel hazanavicius. e é mais do que uma coincidência que, num momento em que esse cinema impresso em celulóide, que só podia ser visto nas salas escuras, está em vias de desaparecer, surjam estes dois filmes que evocam e exaltam a magia do cinema primitivo, mudo e a preto-e-branco; e não será também uma coincidência que, num momento em que a europa se afunda na descrença e parece aproximar-se, desarmada e impotente, da derrocada final, estes dois filmes nos falem de esperança e de redenção. «os povos só podem ser salvos pela ficção».
os talkies cedo demais
por que razão truffaut me dizia que o sonoro devia ter surgido cinco anos depois? porque, no final dos anos 20, quando os talkies se impuseram por todo o lado, o cinema mudo tinha criado um modo próprio de contar histórias, graças a génios como murnau e fritz lang, renoir e jean vigo, griffith e stroheim, dreyer e sjostrom, keaton e chaplin; e o sonoro veio interromper os progressos que essa geração única de criadores havia feito para dar ao cinema uma linguagem autónoma, agravou a dependência dos realizadores em relação às exigências da produção em massa e obrigou a câmara, que começava a tornar-se imponderável e expressiva, a imobilizar-se, por causa das imposições dos microfones e da necessidade de insonorização dos estúdios, condicionados pelas exigências do som directo. hoje, que o digital democratizou e banalizou as filmagens, que a pirataria se tornou incontrolável, que os jovens vêm os filmes nos computadores e, em breve nos telemóveis, é compreensível que os realizadores que amam no cinema sobretudo a capacidade de fazer sonhar os espectadores, se virem para o passado e tentem recriar a magia dessa época em que se faziam filmes para espectadores crédulos, ingénuos e disponíveis.
ao fim de duas décadas em que falou da solidão, da marginalidade e do desespero de se fazer entender e de se fazer amar (os grandes filmes de scorsese, taxi driver, raging bull, good fellas, para só falar de três obras-primas, vão de 1973, ano de meanstreets, a 1993, ano de age of innocence), o dinheiro e os meios falaram mais alto do que as convicções do cineasta; sobretudo, faltaram-lhe histórias em que acreditasse. a invenção de hugo é um grandioso comeback, como o de paul newman gritando sozinho fora do casino, «i’m back», em a cor do dinheiro; e dir-se-ia que os filmes que fez entretanto não foram mais do que um compasso de espera até encontrar o tema que o faria ressuscitar, e em que foi exercitando as suas capacidades de dominar a linguagem do cinema, a um ponto que faz dele um mestre como os mestres que sempre tentou imitar. a invenção de hugo é um prodígio: o domínio da narrativa, a sabedoria herdada dos clássicos, o encontro com um jovem imaginado por brian selznick, que lhe permite glosar a tradição da literatura inglesa do século xix com personagens infantis, de dickens a stevenson, e, ao mesmo tempo, afirmar sem reservas a sua crença nas virtudes do cinema primitivo, ingénuo, romântico e edificante.
scorsese viu em georges mèliès um alter ego, alguém que deseja voltar à ilusão, mais do que à ilusão de ter voltado. méliès foi um visionário que viu na invenção dos irmãos lumière uma máquina de imprimir sonhos, que realizou cerca de 500 pequenos filmes que fascinaram as plateias no princípio do século xx, que percebeu antes dos outros que o cinema era encenação, montagem e magia, e que, dez anos depois, com o começo da i guerra, viu o seu sonho desmoronar-se e acabou na miséria, esquecido do público, dado como morto na guerra e, de facto, escondido por trás de uma boutique de brinquedos para crianças, na gare de montparnasse, até ser descoberto em 1931 e recuperado para a memória dos cinéfilos. o que méliès fez dessa «invenção sem futuro», como a designavam os seus criadores, ajudando-a a transformar-se na mais prodigiosa das artes populares do século xx, inventando toda a espécie de trucagens que era possível imaginar, fez scorsese, um século depois, com o 3d: o mais prodigioso dos brinquedos, como orson lhe chamou, ao serviço de uma história que não tem receio de usar os clichés dos últimos filmes mudos e dos primeiros filmes sonoros e que o cinema, entretanto, desprezou.
a invenção de hugo é um filme sobre a perda: hugo perde o pai e a mãe, e o caderno onde ele depositava toda a esperança de decifrar a mensagem do pai. com a guerra, méliès, esse, perde tudo: fortuna e prestígio, os filmes e os robôs, os sonhos e os haveres, como o chefe da gare perdeu a perna, e a florista, o irmão. mas é também o filme dos reencontros: hugo reencontra uma família, méliès recupera o seu passado ao ser reconhecido quase 20 anos depois; e, no fundo da cena, os namoros consumam-se e esquecem-se vinganças e desavenças.
um génio moribundo volta à vida
é aqui que entra a segunda lição de truffaut: «os filmes não podem ser ingratos com a vida». o cinema, disse-me ele, não tem o direito de deixar as pessoas sair da sala deprimidas, desesperadas e descrentes, como se a vida não valesse a pena. é isso também que nos ensina o artista, um tour de force ganho com brio e panache por um realizador praticamente desconhecido, que aposta sem receio, também ele, nos clichés dos tempos em que cinema vivia a sua idade da inocência (os filmes mudos de chaplin e os primeiros filmes sonoros de rené clair andam por perto), em que os estereótipos faziam carreira (o polícia e o milionário, o galã e a menina ingénua), e em que vingavam os bons sentimentos. com um casting impecável, gags prodigiosos, um timing e um découpage sem falhas, uma partitura brilhante e avassaladora (em parte inspirada em vertigo), hazanavicius ganha a sua aposta e traz de volta o génio moribundo do cinema europeu. e não deixa de ser a última das curiosidades, que estes dois filmes, que recuperam o passado, voltem a fazer a ponte tantas vezes interrompida entre a europa e os estados unidos: enquanto o americano scorsese vem filmar a uma paris nostálgica dos anos 30 a história de um pioneiro do cinema, o francês hazanavicius filma como se estivesse numa américa mítica, onde o sonoro irrompeu com a força das grandes revoluções, deixando pelo caminho muitos actores populares e, sobretudo, o génio imenso de griffith, stroheim e buster keaton.
