Música Espiritual

Tem a mesma rotina todos os dias. Acorda sempre por volta das oito da manhã, toma um pequeno almoço rápido e entrega-se à música. Umas vezes o estudo diário exige a prática instrumental – porque a guitarra e o piano (os instrumentos que domina) são «uma extensão» do seu corpo –, outras a simples audição…

apesar de fazer da música vida há praticamente dez anos, carmen souza, cantora portuguesa de ascendência cabo-verdiana, não sabe precisar quando começou a cantar. como em qualquer lar cabo-verdiano «é muito comum o homem saber tocar um instrumento», carmen cresceu rodeada de música. o pai tocava guitarra. o avô violino. por isso, a aprendizagem musical começou, precisamente, pelos instrumentos. o canto surgiu mais tarde, quando a educação cristã que os pais lhe incutiram reforçou o contacto com a música.

com as peregrinações domingueiras à igreja do nazareno, uma congregação evangélica cristã em lisboa, começou a cantar regularmente e a ganhar treino vocal. mas só quando conheceu theo pas’cal é que soube que tinha voz para fazer carreira. «é muito difícil para uma pessoa que canta desde criança perceber que pode fazer disso profissão. é preciso ter algum apoio e em minha casa, apesar de haver muita música, ninguém tinha esse conhecimento. o theo foi a pessoa que me disse: ‘tu tens realmente talento e tens de perseguir isso’», conta carmen, em entrevista por telefone ao sol a partir de londres, para onde se mudou em 2008.

o encontro com o produtor, compositor e músico aconteceu quando carmen tinha 17 anos. depois de tantos domingos a cantar para uma audiência familiar, a cantora resolveu testar a sua voz com uma plateia desconhecida e participou numa audição para o grupo de gospel shout!. theo pas’cal era o director musical e artístico da formação e não teve dúvidas. carmen foi imediatamente aceite e começou a aprofundar os seus conhecimentos incentivada por theo, que se tornou o seu mentor. primeiro apareceu o jazz vocal, depois o instrumental e a improvisação.

 

mudança estratégica para londres
depois de três anos com os shout!, a decisão de apostar numa carreira em nome próprio foi o passo natural que se seguiu. o primeiro trabalho a solo, ess e nha cabo verde, foi apresentado em 2005 e, três anos depois, em 2008, foi lançado o disco verdade. com ele, chegou também a decisão de se mudar para uma «localização estratégica». «para um músico location is everything e londres, além da localização fantástica, é um pólo de grande cultura, onde se consegue beber de vários backgrounds musicais», explica.

com a aposta assumida na carreira, carmen deixou para trás o curso de tradução inglês/alemão que frequentava em lisboa e avançou para a capital britânica com uma fé absoluta de que tudo ia correr bem. uma máxima adquirida com a educação cristã e espiritual que teve em criança e que assume hoje para tudo na sua vida. «gosto de viver com fé, até porque a vida de um músico é acreditar naquilo que não se vê. acreditar que um dia vamos evoluir e chegar àquele som que procuramos. além disso, acredito que quando se dão passos na vida, há um movimento à nossa volta que obriga o nosso próprio meio a deslocar-se connosco», sublinha.

hoje, quatro anos depois de ter assumido londres como a sua base, é inegável que a deslocação deu frutos. além de ver o seu nome inscrito no circuito internacional da world music, carmen saboreou ainda, em 2010, com o seu terceiro disco, protegid, a pré-nomeação para o grammy de melhor álbum de world music contemporânea e recebeu elogios rasgados de david sylvian. «carmen souza canta em crioulo com uma intimidade, sensualidade e vivacidade luminosas. a_sua música, alcançada através da fusão de influências cabo-verdianas com o jazz e a soul moderna, é de uma simplicidade enganadora e beleza vibrante. é world soul music para o século xxi», descreveu o músico. questionada sobre estes elogios, a cantora agradece o aplauso, mas mantém os pés no chão. «não mistifico muito as pessoas. claro que ouvir um elogio destes é muito bom, mas é tão importante como os das pessoas que me abordam na rua», considera.

no ano passado, quando se estreou nos palcos cabo-verdianos, carmen sentiu pela primeira vez este carinho das pessoas anónimas. «nasci e cresci em lisboa, vivo em londres, viajo pelo mundo inteiro, mas cabo verde foi o sítio onde mais pessoas vieram ter comigo na rua. é engraçado perceber que, embora nunca me tenha assumido 100% como cabo-verdiana, lá as pessoas seguem a minha carreira», constata.

por cá, carmen souza também não é esquecida e, por isso mesmo, o seu regresso aos discos, hoje com london acoustic set , é celebrado com uma pequena digressão pelo país, que passa por lisboa na próxima sexta-feira, dia 9, no teatro do bairro. sobre o registo, a cantora explica que o trabalho «reúne novas interpretações» do seu repertório original porque sentiu uma «necessidade de ouvir os temas de novo na sua forma orgânica, como foram concebidos», em duo, entre carmen e theo. «trabalhamos juntos há uns 11 anos e este disco também é uma maneira de celebrar esse companheirismo, esta colaboração tão abençoada».

além disso, london acoustic set tem um carácter humanitário, uma vez que 50% das vendas revertem a favor de três associações ligadas à infância – sos children’s villages, em cabo verde, infância sem racismo, da unicef, no brasil, e a casa ser criança, da abraço, em portugal. a decisão de concretizar esta iniciativa partiu da própria carmen, que acredita que o seu talento não deve ser só proveito seu, mas também a obrigação de ajudar outras pessoas.

alexandra.ho@sol.pt