Das Duas Uma

HÁ uns anos, quando a pirataria dos filmes tinha invadido o mercado, pondo em risco a própria indústria de cinema (os DVDs já eram uma fonte de receitas superior à das salas), eu era professor num curso de cinema e decidi fazer uma aula ao vivo, durante a destruição pública de uma série de DVDs…

a reacção unânime dos meus alunos, candidatos a realizadores, foi de indignação, não pelo facto de haver cópias piratas do trabalho de realizadores, mas por verem destruídos exemplares de filmes que eles gostariam de levar para casa. de tal modo estavam habituados a visionar dvds piratas que a ideia de estarem a roubar o trabalho de realizadores e o dinheiro de produtores não lhes ocorria como sendo um crime. foi difícil explicar-lhes que, para eles poderem ver os filmes obtidos de forma ilegal e vendidos a preços ridículos, tinha sido necessário que alguém os financiasse e os realizasse. e que, sem a devida remuneração, o cinema corria o risco de acabar, e eles, de estarem a aprender uma profissão que, por isso, estava em risco de desaparecer. com o download gratuito, a questão agravou-se. o roubo de músicas e filmes na internet tornou-se um hábito.

está neste momento em discussão na ar uma proposta de lei elaborada pela ex-ministra da cultura, gabriela canavilhas, que alargava o âmbito da ‘cópia privada’ a novos suportes e equipamentos de reprodução e dispositivos de armazenamento (cartões de memória usb, discos rígidos, leitores, gravadores de mp3 e mp4). este alargamento introduz, finalmente, na lei de 1998, uma justa remuneração do trabalho e do investimento de autores, produtores/editores e artistas, ao mesmo tempo que deixa aos consumidores a liberdade de reproduzir conteúdos para fins privados.

235 anos depois de beaumarchais se ter batido pela consagração da remuneração dos autores teatrais pela encenação das suas obras, espera-se que esta proposta de lei da cópia privada seja rapidamente aprovada e que portugal alinhe, assim, com a maioria dos países europeus que fizeram já esses ajustamentos face aos desenvolvimentos tecnológicos e ao consequente alargamento do mercado. canavilhas tinha deixado pronta igualmente uma lei de cinema, que a nova maioria rejeitou (mesmo se está na base da nova proposta de lei que continua em discussão pública), onde, em coerência com estas taxas, a antiga ministra impunha obrigações de investimento às telecomunicações, uma vez que, comprovadamente, estas utilizam conteúdos audiovisuais, mas que esta lei decidiu rejeitar. aliás, sendo a secretaria de estado da cultura o elo mais fraco das três tutelas envolvidas na nova lei (as outras duas são a do audiovisual e a das telecomunicações) é de temer que a tutela do cinema não tenha força política para impor a todos estes agentes as obrigações de investimento com que deveriam contribuir para a produção cinematográfica e audiovisual. estaremos perante um caso mais em que o poder político é capturado pelo poder económico?

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