Das Duas Uma

No espaço de três dias, o último Secretário de Estado da Cultura do segundo Governo de Cavaco Silva e o actual, citaram-me em abono das suas teses.

pedro santana lopes (psl), no expresso, declarou que eu teria dito que ele «era a pessoa mais parecida com o dr. mário soares que [eu] conhecia». e francisco josé viegas (fjv) disse no parlamento que o que eu achava ‘o melhor filme português do ano passado’ fôra feito com 50 mil euros.

para além da lisonjeira importância que atribuem às minhas opiniões, aproveito a deixa para clarificar ambas as afirmações que me são atribuídas (de boa-fé, não duvido), mas que são susceptíveis de adulterar o que penso. que me lembre, terei dito a uma jornalista que fez um perfil de psl num semanário, que ele tinha duas qualidades importantes num político: o faro (que, num político, se confunde com a inteligência) e a coragem (que é, num político, a forma visível do carácter), e de que soares era o exemplo supremo. era isso, e o fair-play democrático, que havia permitido a soares sobreviver a todas as crises e a várias derrotas eleitorais.

trabalhei com psl, a quem cavaco silva entregou a tutela do secretariado nacional para o audiovisual, durante cerca de dois anos. não foi, por várias razões, uma convivência fácil, mas apreciei nele essa duas qualidades: o faro e a coragem. mas, quando falei com a jornalista, acrescentei que psl tinha «uma inteligência conspirativa e uma coragem de forcado», o que nele traía uma forma de imaturidade. e disse mais: que num grande político (como foram churchill ou roosevelt nos tempos modernos), têm obrigatoriamente de conviver dois objectivos inseparáveis: um gosto pela liderança e um grande desígnio. era o que soares tinha, como nenhum outro político português antes e depois do 25 de abril: um grande desígnio, que cumpriu escrupulosamente e que o ajudou a tomar sempre as decisões certas. o que falta a psl (até ver) é isso mesmo; um grande desígnio.

quanto a fjv, é verdade que eu acho que alguns dos melhores filmes portugueses recentes foram feitos com cerca de 50 mil euros: suicídio encomendado, de artur correia araújo e embargo, de antónio ferreira. atrevo-me a acrescentar nirvana, de tiago carvalho, que ainda não vi, mas de que conheço a obra anterior, feito praticamente sem um euro. resta esclarecer uma coisa, para que não se utilize o argumento contra a necessidade de financiamento público directo ou indirecto num mercado que é pequeno, pobre e dominado pelo cinema americano. a verdade é que nenhum desses filmes custou o escasso dinheiro que nele foi investido, mas dez ou mais vezes mais: só que, neles, tudo ou quase tudo foi feito pro bono, porque são realizadores que normalmente não cabem nos critérios abstrusos dos júris do ica. é essa a conclusão que se deve tirar e que deveria, por isso, ser tida em conta na nova lei que se esperava que abolisse ou, pelo menos minimizasse, os enormes estragos do sistema de concursos, que têm promovido muita mediocridade e destruído muitos talentos.

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