duarte é o protagonista de o teu rosto será o último, primeiro romance de joão ricardo pedro, 38 anos, natural da amadora, pai de dois filhos pequenos, engenheiro electrotécnico no desemprego há três anos que, antes, não havia escrito sequer uma linha de ficção. começou a escrever no momento em que foi despedido. a obra valeu-lhe o cobiçado prémio leya (100 mil euros), tornando-o o primeiro português a conquistá-lo. esta semana nas livrarias, eis um romance claramente português, mas muito aberto à interpretação livre. joão ricardo pedro é o novo nome a fixar.
na obra de beethoven, duarte diz que só encontra’‘solidão e morte’. o que é que gostava que encontrássemos neste romance?
terminei de escrevê-lo há um ano. hoje, através das reacções dos leitores, cada vez me apercebo mais das suas múltiplas leituras possíveis. o fundo temporal é portugal no pós-25 de abril e a herança do salazarismo, mas o centro é alguém que nasce com um dom, o que pode significar mais um fardo do que um veículo de felicidade. interessava-me reflectir sobre o destino individual face ao colectivo, as nossas relações com uma auto-imagem e com as obras de arte.
no final, o livro revela-se muito enigmático. não chegamos a perceber as ligações entre as histórias entrelaçadas…
nem eu as resolvi completamente, confesso [risos].o livro tem uma série de pormenores simbólicos, mas não existe uma resolução final. esses espaços vazios e em aberto deram-me muito prazer durante a escrita.
planificou uma lógica narrativa?
o acto de escrever é que, de repente, se tornou parte do meu quotidiano e foi compondo o romance. comecei por ter páginas de histórias e personagens desconexas. só ao fim de um ano é que procurei alguma unidade e, então, decidi que cada capítulo deveria ser quase auto-suficiente e que muitas das ligações deveriam ser quase invisíveis.
num sonho, duarte ataca com dureza alguns dos maiores compositores românticos, por oposição a bach…
os românticos deram cabo disto tudo. destruíram a alegria da música como celebração, que vinha do barroco e de bach. o que é que existe da personalidade de bach na música de bach? se calhar, nada; ele é um executante funcional, uma espécie de carpinteiro da música. em todos os românticos, dá-se uma identificação radical entre a personalidade do compositor e a música. beethoven é o exemplo maior, pondo todas as suas misérias e experiências na música que faz.
já gostava de música clássica antes?
não, cresci a ouvir rock, jazz e música brasileira. e nunca toquei piano na vida. foi o duarte que me levou a, durante dois anos, ouvir e investigar música clássica e erudita.
no romance, há uma fixação com amputações físicas e outras [um médico coloca um olho de vidro num desconhecido; uma pintora sem uma perna identifica-se com uma personagem de brueghel; um pianista virtuoso amputa a mão esquerda depois de tocar para os nazis …; há vários acidentes mortais, doenças e orfandades]. depois, há a ideia da grandiosidade do dom artístico e da arte, capazes até de incorporar uma espécie de transumância de almas e de destinos. este é, afinal, um livro macabramente romântico…
sim, e tem um lado mórbido muito grande. o jogo é mesmo esse. duarte revolta-se contra beethoven, mas ele é o centro e é no meio desta paixão e revolta, também elas românticas, que se resolvem as coisas. eu próprio sou muito mais romântico do que barroco. quanto às amputações, não consigo explicá-las [ri].
esta espécie de destino fatal que atravessa as personagens tem raízes ainda antes da segunda guerra e centra-se em datas simbólicas. é como se a transmissão de um dom seguisse a par da de uma maldição.
bem, há a ideia importante de que a vida dos filhos começa antes do dia em que nascem; tem raízes na história da família como herança [como foi, no seu caso, a inspiração em memórias do pai e de familiares na guerra colonial].
duarte acaba por odiar o seu dom porque ele o anula como pessoa?
aquilo correu bem enquanto eram só as mãos que tocavam. quando se apercebe das sensações que o que toca pode provocar, ele assusta-se, porque é como se passasse para o lado do receptor e escutasse aquela música terrível pela primeira vez. há outros momentos no livro sobre os jogos possíveis entre a obra de arte, quem a executa e quem a frui. no fundo, existe algo de ético na forma como a obra de arte se relaciona com as pessoas.
quais foram as suas influências literárias?
primeiro, a metamorfose, de kafka. depois, li camus e proust, que foi decisivo. no liceu, não li os portugueses. só já depois dos 30 anos é que descobri eça e camilo, mais tarde o antónio lobo antunes, que se tornou o autor mais determinante. de repente, ao ler o manual dos inquisidores, descubro alguém que escreve sobre o portugal contemporâneo, com um enorme poder metafórico. faz-me febre, põe-me doente e por isso não consigo lê-lo com frequência. lobo antunes é nitidamente um beethoveniano, no sentido trágico. tanto o beethoven como o lobo antunes são pessoas cuja obra admiro profundamente, mas com quem não faço questão de me encontrar num café [ri]. no extremo oposto, influenciou-me o josé cardoso pires, com quem criei empatia e que foi o que mais me ensinou o ofício da escrita.
é daí que vem um certo humor e o calão que atravessam o seu romance?
talvez. é um livro trágico, mas com apontamentos humorísticos. o calão muitas vezes ajuda, não só no humor, mas também em momentos de maior intensidade dramática. o calão associado ao desespero tem muita força. este livro está cheio de solidão, de morte, mas também de humor.