já sabemos que a ‘crise’ tem as costas largas e que aquilo a que estamos a assistir é o que poderemos chamar um prec de uma certa direita (há tantas diferenças entre o ppd e o psd, e entre estes e o cds, como há dentro do ps, e entre estes e os partidos à sua esquerda), que, à semelhança do que fez thatcher em inglaterra, ataca as chamadas ‘conquistas de abril’ e despreza a cultura, no que isso representa de intervenção social, de criatividade livre, de rebeldia e de crítica.
em momentos como os que estamos a viver, os ficcionistas sempre tiveram um papel decisivo na denúncia das desigualdades, na crítica das instituições e dos costumes e, muitas vezes, ajudaram as sociedades a corrigir as suas injustiças e os seus abusos. sempre considerei que o cinema, a grande arte narrativa do século xx, tinha (e teve) esse papel, e os cineastas essa responsabilidade. uma das coisas que o cinema tem de extraordinário, para mim, é a possibilidade de tomar contacto com realidades que, de outro modo, teria dificuldade em conhecer. quando fiz jaime, chocado com a exploração do trabalho infantil, que havia sido agravada com a falência de muitas indústrias obsoletas, sobretudo no norte, na área do têxtil e do calçado, passei um mês na região do vale do ave, onde tomei contacto com a dura realidade do trabalho infantil, e na cidade do porto e arredores, onde pude conhecer as ‘ilhas’ da cidade sem ser considerado um intruso, e vi de perto a forma heróica como muita gente sobrevivia às duras condições de vida e à marginalidade social.
há um ano, quando percebi ‘o que aí vinha’, imaginei, com o tiago r. santos, um guião para um filme os gatos não têm vertigens – um dos muitos que, apesar de oficialmente aprovados ao abrigo da legislação em vigor, estão a ‘marinar’, alegadamente até haver uma nova lei (?!) –, que me iria permitir falar de duas realidades simétricas, mas igualmente dramáticas, que a sociedade, criada a partir dos anos 80, deixou crescer com uma feroz indiferença: os velhos deixados ao abandono ou desterrados em lares, e os jovens obrigados a sobreviver em bairros degradados com famílias problemáticas, no meio da miséria, da droga e da violência. isso levou-me a conhecer alguns desses jovens, acolhidos por associações que, melhor ou pior, os conseguem recuperar para a vida adulta, numa altura em que a sociedade que estamos a criar os empurra cada vez mais para a rua, para o desemprego e para a delinquência – o que torna ainda mais heróico o esforço de algumas dessas instituições, cujo trabalho se assemelha a alguém que vai buscar água à fonte com um balde furado.
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