‘Representar é muito difícil’

Numa sala contígua ao Salão Nobre da Câmara de Lisboa, Jeremy Irons recebe o SOL com um caloroso aperto de mão e pergunta se podemos conversar na varanda. «Assim posso fumar», esclarece.

o vício é tão forte que o actor deixou, inclusive, de ir à cerimónia dos óscares porque não consegue ficar muito tempo sem nicotina. enquanto fala, cria com perícia uma cigarrilha, num acessório portátil de enrolar tabaco. brinca com ela nas mãos alguns minutos, antes de a acender. o rosto, envelhecido, que tantas vezes aparenta rigidez ou snobeira britânica, ganha outra energia observado ao perto. nem parece ter 63 anos. a imagem do homem cordial, mas esquivo e distante que revelou há um mês, quando aterrou em lisboa, desaparece. o que o fez mudar? a estadia em lisboa, onde o actor é «sempre feliz» porque gosta «de cidades que apregoam a sua cultura, que têm uma arquitectura e património únicos, que são relaxadas perante a vida e que se fazem valer da sua história, com milhares de anos».

jeremy irons esteve na capital a filmar comboio nocturno para lisboa (filme de billie august, com quem já tinha trabalhado em a casa dos espíritos) e caracterizou raimund, a sua personagem, como um professor «com uma mentalidade muito circunspecta». os antípodas da sua personalidade. «ao contrário de raimund, que só se apercebe que a vida tem possibilidades infinitas muito tarde, eu descobri cedo que a vida é para desfrutar». e acrescenta: «o maior arrependimento que se pode ter no fim da vida é olhar para trás e ver que só se trabalhou. os capitalistas é que inventaram isso. fuck them».

o discurso recorda as ex-ligações do actor ao partido trabalhista britânico. na altura de tony blair, jeremy irons e a mulher, a actriz irlandesa sinead cusack, eram dos maiores financiadores do partido. hoje o actor não esconde que blair o desiludiu. «claro que a pobreza nunca é uma coisa boa – e, tal como na irlanda, onde vivo grande parte do tempo, aqui em portugal há muita –, mas odiei o que o boom económico fez às pessoas. tornou-as gananciosas e agressivas». acredita que a crise «pode ser uma grande lição, fazendo sobressair o melhor que há em cada um. não interessa se temos um carro velho e a casa por pintar. o mais importante são as relações humanas».

ainda assim, há paixões que só o dinheiro sustenta. e jeremy irons tem uma bem dispendiosa: comprar casas degradadas para depois as recuperar. ao todo tem sete, entre elas um castelo na irlanda. «quando era um actor no início de carreira, sem dinheiro, fazia o mesmo, mas com mobília. comprava cadeiras velhas, que ninguém queria, e tratava delas. com as casas adoro devolver-lhes a vida», explica. por isso, foi com pena que percebeu o desapego da população pela lisboa histórica. «é uma verdadeira jóia», considera, reconhecendo que viu muita coisa na capital que lhe agradou. «não tenho é energia para me meter noutra casa», lamenta. «deixo lisboa na terça [dia 17], estou três dias em casa e vou [amanhã] para nova orleães [eua] para iniciar outro filme».

representar é, então, o seu propósito de vida? «o que adoro não é tanto representar, que acho muito difícil, mas sim contar histórias com um grupo de pessoas. seria igualmente feliz se fosse cameraman ou operador de som», diz, enquanto uma assistente de produção avisa que a conversa tem de terminar. depois do aperto de mão inicial, não se resiste a uma despedida tipicamente portuguesa, com dois beijos. «na bélgica dão três», diz imediatamente o actor, aproximando o rosto para um último contacto facial.

alexandra.ho@sol.pt