é o caso de antónia, a empregada de casa dos meus pais. a antónia era toda ela cheia de pormenores: na forma como apanhava o cabelo num carrapito irrepreensível, nas mãos areadas de veias saltitantes, no amor que punha quando nos fazia bolinhos de areia, que nos enfiava nos bolsos dos bibes antes de chegar a carrinha do colégio. usava uns óculos de aros pretos com lentes grossas, era miudinha e rija, e nunca adoecia. só tinha dores de cabeça, por isso ganhou um vício chamado saridon que comprava na farmácia macedo, ao cimo da rua, às dúzias de caixas sem receita médica, graças ao seu imbatível poder de persuasão.
a antónia não sabia ler, por isso, quando fiz 12 anos, decidi ensiná-la. comecei a dar aulas a seguir ao jantar, assim que ela terminava o serviço da casa – que passava por lavar a loiça, secá-la e arrumá-la no armário da cozinha. foi por causa dela que nunca se comprou uma máquina de lavar loiça. a concorrência era demasiado directa, por isso, fez finca-pé, reclamou, chorou e disse: «nem pensar». e a minha mãe só voltou a pensar no assunto quando ela se reformou.
sentávamo-nos em cima da cama dela porque não havia nenhuma mesa nem secretária no quarto. letra a letra, a antónia, a caminho dos 40 anos, tentava alinhar ícones misteriosos, distinguir vogais de consoantes, desenhando-as com afinco, num esforço muito maior do que o de encerar a casa de uma ponta à outra ou fazer um jantar para 30. eu encorajava-a, mas a aprendizagem era lenta e difícil, como se as letras lhe pesassem mais a cada serão. quanto mais sabia, menos capaz se sentia de aprender. e quando já sabia escrever e ler meia dúzia de palavras, desistiu de repente. «estou velha», dizia. «não consigo».
ela que em nova, apesar de ser a mais franzina das raparigas da aldeia, conseguira levantar um tronco de uma árvore que mais ninguém conseguira. ela, que resistira a assaltos na rua e que batia nos rapazes que nos chateavam. ela, que conseguia em menos de 20 minutos fazer um bolo de chocolate que ia ao forno e tudo. ela, que cosia botões à velocidade da luz. ela, que nunca estava cansada, estava cansada de aprender, porque nunca tinha aprendido. achava que não lhe ia servir de nada, que aquelas letras todas na imaginação só lhe iam trazer mais dores de cabeça. e depois tinha de tomar mais saridons.
hoje, olho para trás e vejo que durante toda a sua vida me deu muito mais do que eu lhe dei. guardo-lhe uma gratidão profunda e desajeitada que me faz telefonar-lhe para dizer que a adoro, que nunca conheci ninguém como ela, que se não fosse ela não gostava nem de fados nem de corridas de toiros. que, se não fosse ela, talvez não soubesse fazer bolinhos de areia, nem mimar tanto aqueles que amo. l