com ele e com uma trupe de gente da minha geração que sonhou com um país livre e um cinema que incendiasse os corações do público nas salas escuras. no vává, antes de ser vandalizado por uma gerência que não sabia o que estava a destruir, às noites no gambrinus, à volta de uma caña quando estávamos tesos ou de várias, a acompanhar umas angulas, quando um de nós recebia o cheque de um filme de publicidade ou de um documentário, acho que não houve um dia que não estivéssemos juntos: com o césar, o paulo rocha, o seixas santos, o carlos saboga (até ao dia em que teve que emigrar para paris), às vezes o gérard, todos unidos pela mesma paixão cinéfila e pela doce ilusão de que, um dia, os nossos nomes se iriam juntar ao ilustre panteão dos génios da 7ª arte.
esse entusiasmo e essa ilusão foi o melhor da minha vida e acho que foi a de todos nós. mas o fernando tinha um dom. ele fazia os consensos, lançava as pontes, impedia as rupturas, sobretudo depois da revolução, em que foi cada um para o seu lado. brilhante, fino, com um tacto invulgar, sem ele não teria havido o centro português de cinema, sem ele muitos de nós não tínhamos filmado ou não tínhamos acabado os nossos filmes, sem ele tínhamo-nos zangado vezes sem conta por uma ninharia, sem ele, sobretudo, não tinha havido o cinéfilo, essa revista que ele desencantou no século (ele era o director, eu o chefe de redacção), e que marcou a vida cultural portuguesa na área dos espectáculos, como o tempo e o modo na área da cultura escrita.
nos últimos 20 anos, o fernando deixou de ser capaz de fazer esses consensos; e, como ele não os fez, ninguém os fez. os cineastas da nossa e das gerações seguintes dividiram-se em dois campos irreconciliáveis: os que escolheram fazer filmes com o veredicto do estado e os que preferiam ter o veredicto do público. deixei de o ver, mas a memória do melhor que vivemos bateu-me à porta, pungente e dolorosa, agora que soube que ele nos deixou para sempre.
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