Novas oportunidades

Há dias, o primeiro-ministro declarou (cândida ingenuidade ou perverso cinismo?), que o desemprego era uma oportunidade para as pessoas mudarem de vida.

ao vê-lo entregar o prémio leya a joão ricardo pedro, autor do romance o teu rosto será o último, pensei que teria sido o ‘caso’ deste novel autor que lhe tinha inspirado este elevado e conspícuo pensamento. ‘revejam-se’ – pensou passos coelho – ‘no exemplo deste engenheiro electrotécnico, nascido nas vésperas do 25 de abril, que ficou desempregado e disse para os seus botões: ‘embora escrever um romance! ganho o prémio leya, empocho uns cem mil euritos e refaço a minha vida!’ e assim fez. e assim foi. mas suspeito que joão ricardo pedro nunca imaginou que o seu exemplo viesse a servir para justificar as cegas políticas de austeridade, o emprego galopante, as falências em cascata, o desespero dos jovens, as pessoas diariamente atiradas para a rua. e os cortes na cultura.

devo dizer que ricardo pedro se revela um escritor prodigioso (no sentido literal do termo: um inventor de prodígios), com o único senão de o livro não atar as pontas que ele próprio desfia a cada novo capítulo (é um parti-pris), o que me faz lembrar o que flaubert disse a um jovem escritor que lhe pediu um conselho sobre o seu primeiro romance: ‘o livro está cheio de pérolas, mas não se esqueça que não são as pérolas que fazem o colar; é o fio’! mas não é do romance que me proponho escrever (talvez volte a ele um dia destes), nem das qualidades invulgares deste autor surpreendente, mas sim do aproveitamento que o primeiro-ministro fez deste caso singular, em que nos brindou com outra pérola: «se noutra ocasião tive a oportunidade de dizer que o valor da cultura não se mede pelo montante da sua conta no orçamento do estado, agora afirmo que os domínios do espírito e da criatividade não pertencem a ninguém, e certamente não ao estado».

maneira hábil de se descartar das responsabilidades da secretaria de estado da cultura que, sob o pretexto de que o estado não deve ser paternalista com os artistas, continua a não dar qualquer sinal de quando irá cumprir os compromissos com produtores e realizadores, as obrigações legais e os acordos assinados. há uma sugestão que passos coelho não se atreveu a fazer, mas que eu deixo no ar: porque não aproveitamos, nós, cineastas, o facto de ter deixado de haver dinheiro para filmar, para tentarmos uma carreira de engenheiros electro-técnicos?

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