oque não é aceitável – porque é mentira – é que esses subscritores de um estranho ‘ultimato ao governo’ (só se faz um ultimato quando se anuncia o que se fará se o sujeito não ceder às nossas exigências) digam que o projecto de lei posto à discussão teve «um acolhimento positivo por parte de todo o sector». a menos que por ‘todo o sector’ se entenda apenas o grupo dos realizadores e produtores que o assinaram e não toda a cadeia de valor que permite financiar e comercializar os filmes que fazemos: distribuidores, exibidores, editores de vídeo, operadores de televisão, distribuidores de canais por assinatura, etc ; e que, por produtores e realizadores, se entenda apenas aqueles que assinaram o ‘ultimato’ e que, num misto de arrogância e autismo, se consideram os únicos ‘autores’, excluindo todos os outros que discordaram do espírito da proposta de lei, entre os quais se inclui a associação de realizadores a que pertenço, as associações de produtores de cinema e de televisão e as dos argumentistas, directores de fotografia e de animação, sem contar com os pareceres críticos da maioria dos agentes consultados.
étempo de acabar com a apropriação que uma certa crítica fez, nos anos 90, do termo ‘autor’ para caracterizar um cinema que consideram que tem direito a existir, contra um cinema acusado de ‘comercial’, que devia ser banido dos ecrãs. o tema merecia um artigo que não cabe nestas linhas, mas convém esclarecer que a ideia de ‘autor’ associado a realizador de cinema foi lançada pela primeira vez por um jovem crítico, françois truffaut, em janeiro de 1954, aos 21 anos, num artigo que iria revolucionar a crítica de cinema, nos saudosos cahiers du cinéma, e que, em fevereiro de 1955, numa crítica elogiosa a ali baba de jacques becker, definiu o que entendia pela ‘política dos autores’. para avivar a memória, digamos apenas que, para truffaut e os seus amigos, godard, chabrol e outros, os verdadeiros ‘autores’ eram, além de renoir e rossellini, sobretudo hawks e hitchcock, que a crítica da época desprezava por considerar serem vulgares ‘realizadores comerciais’.
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