a vida, quanto melhor é, menos dificuldades nos traz e mais nos fecha nesse modo funcionário de viver, que nos faz tão apegados à vidinha. a vidinha é boa, é calma, é confortável, é tranquila, faz bem à saúde e à cabeça porque nos sentimos arrumados no mundo, mas é o que é. e até pode ser para todos, mas para alguns não chega.
eu gosto do lado bom da vidinha, de ir aos mesmos lugares e de ritualizar rotinas com as pessoas de quem gosto. a vida organizada em horários, em dias de trabalho e de descanso, em noites de sono ou de festa, empresta-me a estabilidade necessária para perseguir e alcançar os meus objectivos. mas há mais vida.
os espíritos criativos são espíritos insatisfeitos, sonhadores, inquietos, visionários, impossíveis de domar. são espíritos livres, que voam sempre que querem e pousam onde lhes apetece, que só param quando caem para o lado e que nunca deixam de sonhar. beethoven compôs a 9.ª sinfonia completamente surdo, borges escreveu já cego e washington roebling, engenheiro responsável pela construção da ponte de brooklyn dirigiu os trabalhos da janela do seu apartamento numa cadeira de rodas. nestes e em tantos outros espíritos criativos, o sonho e a vontade de os realizar superou todas as limitações, porque para quem vive apaixonadamente só o céu é o limite e o céu não acaba, nem ninguém lhe pode tocar.
sonhar sempre mais e mais alto, acreditar que o que já vivemos nos vai fortalecer e olhar para o presente com optimismo e para o futuro com esperança é o que distingue os visionários inconformados daqueles que se instalam na vidinha. o ramerrame do almoço de domingo em casa dos sogros, da mesma praia de férias todos os verões – sempre com os mesmos amigos – de jantar nos mesmos restaurantes e de escolher sempre o mesmo vinho limita-nos, atrasa-nos, estupidifica-nos.
por mais confortável que nos seja este bem-estar, arduamente conquistado, que nos vai parar às veias, é preciso reagir, não contra ele, mas para que ele não nos domine. apaixona-te pela tua existência, dizia kerouac, que também proclamava: «as únicas pessoas para mim são as que estão loucas, loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam, nem dizem lugares comuns, mas que ardem, ardem, ardem…».
saber viver passa por saber viver sem medo, por saber voar, às vezes com os motores desligados, sem espreitar se a rede está lá em baixo para nos amparar, mesmo que seja por um instante, mesmo que depois a realidade nos acolha e nos proteja.
é que a vidinha estará sempre lá, mas os grandes momentos, aqueles que só acontecem de vez em quando, não nos esperam todos os dias ao virar da esquina. é preciso agarrá-los quando o acaso joga a nosso favor.
viver sem medo não é loucura, ou se o for, é uma loucura saudável. é o medo que nos mata. e um espírito livre não pode ter medo, ou deixa de ser livre. l