Apocalipse Neoliberal [vídeo

Saiu de mãos a abanar do Festival de Cannes, onde esteve em competição pela Palma de Ouro mas apesar de dividir as críticas esteve sempre debaixo dos holofotes. Cosmopolis tinha, afinal, tudo para ser mediático: é a primeira adaptação ao ecrã da escrita pós-modernista de Don DeLillo, pela câmara habitualmente perturbadora de David Cronenberg, e…

uma junção explosiva que o mundo deve ao produtor português paulo branco. na conferência de imprensa realizada no centro cultural de belém (ccb), em lisboa, no dia 29 de maio, com a presença de cronenberg e pattinson, branco contou que a ideia terá nascido em edições anteriores do estoril film festival, de que é organizador: «foi o [escritor] paul auster, a quem o livro cosmópolis foi dedicado, que me apresentou o don delillo. achei o livro muito cinematográfico e que tinha de conseguir os seus direitos».

depois do ‘sim’ do romancista, o filho do produtor insistiu que cosmopolis «tinha mesmo de ser adaptado pelo david [cronenberg]» e que o pai «teria de ir atrás dele». dois dias depois de ler o livro, o realizador de crash e existenz acedeu. foram os diálogos estilizados que o convenceram, lembrou. «eram muito dramáticos e muito interessantes, transcrevi-os todos, levou-me três dias, depois preenchi-os com acção e perguntei-me: ‘isto dá um filme?’ sim, dá um bom filme».

sobre a escolha de robert pattinson, o cineasta canadiano, que assina o argumento além da realização, disse ter havido pouco de misterioso no casting. primeiro procurou um actor que se adequasse à idade da personagem, depois que falasse inglês americano. a intuição entrou mais tarde: «depois olhas para os filmes que o actor fez, vais ao youtube ver as entrevistas que deu, e isso dá-te uma ideia de como ele é, se tem sentido de humor… para mim isso é importante, por mais negro que o filme seja».

quando o guião lhe chegou às mãos, pattinson achou-o poético – «gostei de o ler em voz alta, era muito palavroso» –, mas ficou «assustado». perguntou-se: «porquê? porquê que ele me escolheu a mim?». mas o nervosismo do actor de 26 anos já cronenberg conhecia de gingeira: «acontece também com os mais velhos: o viggo mortensen não tinha a certeza se conseguiria fazer de sigmund freud em um método perigoso, tive de lhe dizer: ‘eu sei que consegues fazer isso, és o melhor para esse papel’.»

vampiro capitalista

robert pattinson personifica eric packer, um bilionário de 28 anos que atravessa nova iorque numa limusine branca para ir cortar o cabelo. o guarda-costas do jovem especulador financeiro diz-lhe que corre perigo de vida, que há uma visita presidencial a obstruir o trânsito («as pessoas ainda acham importante assassinar um presidente?», retorque packer), que decorre o funeral público de um rapper sufi (a quem o somaliano k’naan empresta a voz), que há manifestações violentas nas ruas (a lembrar a grécia actual).

o espaço temporal do filme são 24 horas, embora o próprio conceito de ‘tempo’ seja questionável. packer não quer saber do que se passa em tempo real do lado de lá da sua redoma sobre rodas. ele tem dinheiro e, para um especulador, «dinheiro é tempo». no seu carro artilhado com a mais avançada tecnologia vê acontecimentos que ainda não aconteceram. por isso, o «visionário» não sabe como reagir quando um médico lhe diz que não é possível saber no presente se um sinal que tem na pele é benigno ou maligno. «deixa-o expressar-se», diz o doutor.

para packer «a vida é demasiado contemporânea», frase de uma especialista em teoria, uma das personagens alienadas – entre elas os actores juliette binoche, paul giamatti, mathieu amalric –, com que se confronta episodicamente. são donas de discursos ensimesmados aparentemente disparatados mas poderosos enquanto críticas ao capitalismo.

e o futuro é…

quando o jovem bilionário se apercebe que uma das suas apostas financeiras foi um tiro ao lado, começa a sua crise – existencial. é o apocalipse, mais interior que exterior, mais seu que dos outros. uma jornalista propôs a pattinson que imaginasse o mundo daqui a dez anos. o actor gracejou: «já ninguém me pergunta qual é a minha comida preferida ou qual seria o meu par ideal». e foi entre a explosão de risos, que descobrimos talvez a interpretação que cronenberg retirou do romance de delillo. acrescentou o cineasta: «os economistas também não sabem nada do que se passa, por isso qualquer coisa que o robert diga é possivelmente tão válida quanto a opinião deles».

a era da ratazana

don delillo, um dos pricipais arautos da anti-utopia pós-moderna, escreveu cosmopolis

desde o primeiro romance (americana, 1971) que o romancista de culto don delillo (n. bronx, 1936) escreve tratados sarcásticos sobre uma paranóica condição humana contemporânea. libra (sobre o assassinato de j.f. kennedy), mao ii (literatura e terrorismo) submundo (guerra fria) ou o homem em queda (o 9/11) compõem um panorama do depois de todos os sonhos individuais e colectivos, quando o homem se afoga em solidão, tanto imerso no caudal voraz das multidões incaraterísticas, como sendo capaz de as controlar à escala mundial.

eric packer, um homem-arranha-céus que, aos 28 anos, domina os mercados financeiros, é um dos melhores símbolos do tema central do escritor: a conspiração. no romance cosmópolis, de 2002, e a partir da epígrafe tomada do poeta polaco zbigniew herbert («a unidade monetária passou a ser a ratazana»), ela toma a forma de um comportamento inusitado do iene no mercado de valores (mote para a detonação do universo interno do protagonista) ou de uma multidão de ratazanas largadas pelos activistas em restaurantes nova-iorquinos (a desregulação da cosmopolis, a cidade universal e da ordem). no centro, eric tenta libertar-se da sua própria condição, enquanto deambula por ny (o presidente em visita, o funeral de um rapper, múltiplas manifestações; a cidade em estado de sítio) na sua limusina com forro de cortiça, fundo de mármore de carrara e epicentro de todas as inovações tecnológicas. com um domínio quase perfeito dos ritmos, das sequências, dos diálogos, do tom narrativo, delillo trabalha em lume vivo o choque de eric com um outro homem: com ele próprio e com aquele que, por fim, o mata. assimétricos em si e um em relação ao outro, o homem e o mundo não conhecem nem ordem, nem previsibilidade. é neste contexto que um impulso de destruição se torna um acto criativo.

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aisha.rahim@sol.pt