o egipto balança hoje entre o regresso à ditadura militar e o nascimento de uma teocracia. desapareceu a promessa de uma evolução democrática e liberal?
é preciso entender que o egipto nunca saiu da ditadura militar. o poder dos militares é hoje, aliás, muito maior do que o era no tempo de mubarak. claro que podemos considerar este como um momento de excepção, mas a perspectiva de um «presidente sem pasta», a partir de 30 de junho, adensa as hipóteses do que podemos considerar, aos nossos olhos, uma regressão da 1ª para a 2ª república. o futuro presidente não será o comandante supremo das forças armadas, não terá controlo sobre o orçamento da defesa e não terá qualquer poder legislativo. terá os poderes de nomear o primeiro-ministro e o governo, mas neste momento nada é definitivo, já que o conselho supremo das forças armadas (scaf, na sigla inglesa) diz que este presidente agora eleito será provisório, fala na realização de mais um referendo à nova constituição (a redigir) e de novas eleições legislativas. o objectivo parece ser o de cansar o eleitorado com a ida às urnas, até a determinada altura a abstenção favorecer um candidato que agrade aos militares.
o nascimento de uma teocracia é impossível. muitos dos que a defendem sabem que é impossível levá-la à prática e, por isso mesmo, insistem nesse discurso. é uma questão ideológica, mas sobretudo de discurso de oposição, populista, que conquista o coração das massas.
desapareceu a promessa de uma evolução democrática e liberal, mas não se perdeu a esperança. por isso acho que há uma ruptura completa com o passado. a semente foi lançada e vai dar frutos ao longo do tempo. a democracia não é um café expresso e vai-se construindo de geração em geração. precisamente o que a chamada primavera árabe provocou para já foi uma mudança geracional.
a imprensa internacional parece ter deixado a meio várias histórias da primavera árabe. desapareceram as notícias sobre a líbia e a tunísia, por exemplo. como tem acompanhado os processos pós-revolucionários destes dois países?
a líbia tinha eleições legislativas marcadas para esta semana mas foram adiadas para 7 de julho. parece-me normal. também me parece normal o caminho federalista que este estado vai certamente seguir, após a declaração de autonomia por parte da cirenaica e de bengazi ter organizado as suas primeiras eleições municipais. neste processo, marrocos poderá ter uma palavra a dizer ao sugerir o seu modelo de regionalização avançada e de autonomia das províncias do sul. quanto à questão das milícias, trata-se de saber gerir a distribuição da riqueza. o problema será gerir rivalidades ancestrais e eventuais ajustes de contas dos últimos 40 anos. mais as questões pessoais, que estarão sempre presentes para bloquear avanços colectivos.
a tunísia, como estado pequeno, entalado entre dois gigantes e sem grandes recursos, poderá ser tratada como o elo mais fraco e ser deixada cair. existe uma teoria que diz que é preciso deixar o islão radical tomar o poder para serem as próprias populações locais a dizerem basta e a eliminarem esta corrente por dentro. os recentes episódios das «brigadas fascistas/salafistas» a controlarem os namoricos nos jardins públicos, as indumentárias, a programação televisiva, as exposições de arte e a recente explosão de violência poderão ser indicadores disso. por outro lado, a tunísia sempre foi vista como a «pequena república dos professores» e também como o país dos mundos árabe e magrebino onde a mulher mais se emancipou. é por isso terreno fértil para uma boa campanha mediática anti-salafista, permitindo, no entanto, que os mesmos vão ganhando poder e influência. tudo dependerá do evoluir da situação regional, mas a tunísia poderá vir a passar uma década de negro, fruto dessa lógica de se fazer de vítima para depois servir de exemplo para os outros.
há duas narrativas em confronto na síria. a de um estado que ataca o próprio povo e a de um país atacado por terroristas estrangeiros. qual a verdadeira?
neste momento ambas são verdadeiras. as manifestações começaram por ser pacíficas. aliás, sempre se gritou «silmia, silmia» (pacífico, pacífico) no início de cada marcha e de cada carga policial. mas de momento, a resistência tanto ataca militares como populações. o massacre de houla, de 25 de maio, marca aqui uma fronteira importante. do ponto de vista militar do regime, era necessário esmagar a população sunita (anti-assad) desta cidade, já que se encontrava no centro de um triângulo alauita (pró-assad). a ideia foi formar uma bolsa territorial homogénea. a partir daqui passou a ser claro que as populações alauitas também passaram a ser um alvo da resistência, como são os militares do regime.
quanto a estrangeiros, a referência é naturalmente sobre os jihadistas da al-qaeda presentes no terreno, os quais têm o maior interesse numa desestabilização total, em criar um terreno fértil para os seus objectivos: recrutar mais membros para a sua causa, que não é a mesma causa daqueles que querem construir uma nova síria.
a síria caminha inevitavelmente para uma guerra civil?
a síria já se encontra em guerra civil. quem o disse pela primeira vez foi aliás o chefe da missão de observadores da onu, depois de ter dados instruções a que todos os observadores regressassem aos quartos de hotel. estes estavam a ser atacados pelas milícias do regime e pela resistência, que ficou iludida e posteriormente frustrada pela inexistência de um cessar-fogo efectivo.
mas ninguém quer admitir um cenário de guerra civil, já que isso implicaria novas regras. os resistentes, habitualmente chamados de terroristas e criminosos pelo regime, passariam a ter a legitimidade de combatentes, teriam de ser tratados como tal pelas leis da guerra. e o regime passaria a ter também legitimidade de usar material de guerra ainda mais pesado. já para não falar de um aumento da influência dos vizinhos no conflito, sobretudo irão, turquia (nato) e arábia saudita.
o status quo na síria interessa a toda a gente menos aos sírios.
a argélia foi a votos em maio e o regime de abdelaziz bouteflika venceu. o país passou ao lado da primavera árabe?
o regime de bouteflika conseguiu conter as manifestações de forma muito prática. foi limitando os perímetros autorizados até confinar os manifestantes aos estádios de futebol. tudo isto a bastão e a aumentos salariais brutais, os quais nas fileiras militares e policiais chegou aos 50%. de tal forma foram os aumentos que o banco central teve que criar uma nova note de 2.000 dinares para pagar os ordenados.
não aconteceu a desejada mudança geracional na argélia, mas a bomba relógio chama-se juventude. dos 37 milhões de argelinos, dois terços têm menos de 35 anos, sendo que a taxa de desemprego destes ultrapassa os 40%.
as reformas decretadas em 2011 foram suficientes para evitar a revolta em marrocos?
foram, mas aqui também há o factor monarquia. os marroquinos, apesar das diferenças, sabem que é o monarca que os une a todos. também sabem que são o país mais avançado do magrebe, o mais próximo da união europeia, da qual beneficia do estatuto avançado. aliás, as reformas políticas efectuadas fariam certamente parte do pacote negocial do estatuto avançado concedido a marrocos em outubro de 2008.
há contestações que continuam, mas essas já eram anteriores a 2011, como por exemplo a dos licenciados no desemprego, que todas as tardes se manifestam frente ao parlamento, em rabat. querem trabalho, mas no estado e de preferência num ministério em rabat!
a vaga revolucionária cessou ou ainda há peças de dominó por cair?
a vaga vai continuar. a semente foi lançada e há medos que já se perderam. há sempre peças por cair. é preciso não ter uma perspectiva marxista sobre estas coisas e achar que o problema está resolvido. o que pode parecer resolvido agora poderá ser colocado em questão pela geração seguinte. agora, também será necessário um trabalho de consolidação das novas realidades. é preciso tempo.
no sahel, estamos a assistir ao nascimento de uma cintura de estados falhados? quais os perigos para o norte?
os estados já falharam há muito. o que se tem assistido é a um estrangulamento dos jihadistas desde a somália para o interior, que coincidiu a certa altura com a queda do regime de kadhafi. um dos pontos de encontro foi o norte da nigéria, onde um boko haram que já existe desde 2002 nunca teve a exposição e publicidade que tem agora. outro ponto de encontro foi o azawad, no norte do mali, este de tuaregues fortemente radicalizados que trouxeram armas, experiência e dinheiro da líbia.
a situação no azawad não é clara. continua a haver dúvidas que o mnla (movimento nacional de libertação do azawad) tenha realmente assinado uma aliança com o ansar eddine (grupo islamista radical tuaregue liderado por iyad ag ghaly). mas coloquemos o cenário de que o azawad consegue a independência e que se torna um estado islâmico. este cenário poderá dar força aos independentistas sarauis e levar mohamed abdelaziz, líder da polisario, a tomar uma decisão que certamente já ponderou, mas que seria destrutiva para a credibilidade de quem ambiciona a constituição de um estado independente. essa decisão seria uma aliança com a aqmi (al-qaeda no magrebe islâmico). ora, este é um assunto que poderá colocar em causa o processo de integração territotial no marrocos regionalizado e das autonomias.
por outro lado, também há interesse que as ambições tuaregues fiquem confinadas ao azawad, já que caso reivindiquem a «grande tuaregolândia», irão reclamar territórios à mauritânia, ao burkina faso, à argélia, à líbia e ao níger.
a questão no sahel, como noutras regiões, é para gerir e monitorizar, já que é impossível resolver os assuntos de forma definitiva. há consequências para o norte, como um aumento de armamento na região, eventuais crises humanitárias e de refugiados, a criação de santuários terroristas, o descontrolo nas migrações, etc. mas um cenário destes também poderá forçar uma maior cooperação regional, sobretudo um entendimento entre marroquinos e argelinos.
quem foi o grande vencedor da primavera árabe? o islão político? a turquia? o qatar?
as pessoas, que perderam o medo e ganharam a esperança.
qual o impacto da primavera árabe ao nível das culturas e das identidades da região? já é possível uma reflexão histórica sobre estes acontecimentos?
para já, é possível verificar um gigantesco movimento berbere na líbia. a questão tuaregue também é evidente. o que estes disseram no regresso ao mali foi «é agora!» ao projecto de construir um estado tuaregue.
a primavera árabe veio aumentar ou diminuir o fosso relacional entre europeus e africanos? aproximou-nos ou aumentou ressentimentos?
aproximou inevitavelmente. a primavera árabe veio dar-nos o sentido da proximidade. os ressentimentos parecem-me confinados aos nossos políticos, que sempre levaram ao colo ben ali, kadhafi, mubarak e outros.
apesar de uma história em comum, portugal vive de costas voltadas para o norte de áfrica e para o mundo árabe em geral. o que estamos a perder com isso?
estamos a perder o sentido de que apesar de sermos geograficamente atlânticos, somos geo-estrategicamente mediterrânicos e de que todas as questões que se passam por aqui nos afectarão, para o bem e para o mal, mais cedo ou mais tarde. estamos a perder o sentido da história em comum que temos com marrocos, por exemplo. estamos também a perder oportunidades de fazer coisas em comum a todos os níveis. estamos a perder o sentido da partilha e do conhecimento, o que faz de nós os mais próximos e os mais desconhecidos.