os espíritos mais terrenos preferem esperar para ver, e esperam o tempo que for preciso. por isso, é comum a união entre um espírito voador e um espírito terreno. o primeiro ensina o segundo a voar, o segundo ensina o primeiro a aterrar, porque cada um sabe coisas que o outro tem dificuldade em aprender.
acredito cada vez mais na complementaridade das relações e cada vez menos no efeito espelho. quando conhecemos alguém, sabe-nos bem descobrir o que temos em comum, porque nos empresta aquela sensação de familiaridade que nos pode dar a confiança necessária para avançar. gostar das mesmas músicas e ter os mesmos filmes de culto ajuda, mas descobrir músicas novas e filmes dos quais nunca ouvimos falar é muito mais interessante. se todos gostássemos só de jazz, a vida era uma seca.
acredito que as diferenças são enriquecedoras e que servem para aproximar as pessoas, desde que a base seja semelhante: educação, valores e hábitos, coisas tão simples como ambos arrumarem automaticamente os talheres no prato às 4h20, ou usarem os mesmos códigos de linguagem. nunca me apaixonaria por um homem que usasse bonés com a pala virada para trás, que comesse de boca aberta, que dissesse ‘vistes’ ou ‘faleceu’. para mim as pessoas morrem, ou quanto muito partem, como diz o povo.
o maior desafio numa relação é aceitar os defeitos do outro, sem que isso nos dê cabo dos nervos. é muito difícil, mas é possível. aceitar que fuma, que tem barriga, que é doente pelo sporting, que nem sempre ouve o que lhe dizemos, mesmo quando falamos com o coração nas mãos. aceitar que embirra com os nossos defeitos a ponto de pensar que eles estragam tudo.
aceitar que o tempo, o maior ladrão da existência, também é o grande sábio que repõe a verdade e a justiça e que, a seu tempo, tudo se irá encaixar numa ordem natural que nos vai trazer o melhor.
na verdade, a grande dificuldade numa relação que já tem o mais importante – amor, sexo, riso, bem-estar, paz e entendimento – é aceitar que o outro não se pode moldar a nós como uma luva e que está no seu direito de querer coisas diferentes, ainda que nos ame, porque ninguém ama ninguém acima de tudo, a não ser os filhos.
há quase seis anos que escrevo esta coluna sobre sexo, amor e relações e sinto que cada vez sei menos, porque na verdade não há modelos nem regras; cada casal é um puzzle de peças encriptadas que só os próprios sabem encaixar. somos nós que construímos as regras, por tentativa e erro, com persistência e espírito de missão.
o resto, é a vida a desafiar-nos todos os dias, a dar-nos a escolha de fazermos bem ou mal as coisas. errar faz parte, pedir desculpa também, porque no fundo não amamos como queremos, mas como sabemos e, às vezes, não sabemos nem mais nem melhor. mesmo assim, é bom saber que quando há amor, desistir não é uma opção.