enquanto o governo continua a emagrecer o estado para engordar os privados, a extinguir hospitais, freguesias e tribunais, aquilo a que o ministro da economia, esse allien, chama as ‘reformas estruturais’, enquanto o das finanças se empenhou em aumentar impostos e reduzir salários sem perceber que isso iria diminuir drasticamente as receitas do estado e aumentar os encargos socias, enquanto a asae decide impedir-nos de comer carne mal passada, porque, mesmo desempregados e sem cheta, temos que morrer saudáveis, enquanto relvas insiste em livrar-se da tap e entregar um canal público a brasileiros ou angolanos, ao mesmo tempo que deixa milhares de portugueses sem tv, tudo para nosso bem, enquanto o sec, por leviandade ou autismo, faz o governo aprovar uma lei de cinema que não faz sentido, há quem, inconformado, vá fazendo cantigas.
é o caso de miguel araújo. nascido quatro anos depois da ‘revolução dos cravos’, miguel araújo surpreende-nos com cinco dias e meio, o tempo que levou a gravar 11 canções (a um ritmo de duas por dia!), um cd que prolonga a tradição de sérgio godinho, rui veloso e jorge palma e não a deixa morrer. não são canções de protesto, como eram as do zeca, do adriano ou do zé mário branco, a geração que preparou o 25 de abril, mas são canções inspiradas, na letra e na música, ambas de miguel araújo, que nos falam com graça e uma amargura irónica dos tempos de hoje, de uma geração que vê esfumarem-se as ilusões dos pais e as promessas da democracia. as letras lembram, por vezes, o’neill, via sérgio godinho, outro malabarista da língua, carlos t, porque muitas delas são pequenos sketchs, jorge palma pelo lirismo anarca – e não é pouco ser herdeiro de tão rica herança. ‘os maridos das outras’, o tema mais ‘orelhudo’, é brilhante, mas eu escolheria ‘fizz limão’ se quisesse ilustrar o que este cd representa: o testemunho de uma geração sem fé ( ‘a nossa estética perdeu-se no vazio/a nossa ética anda presa por um fio’), mas que insiste em não se deixar morrer.
desde o fim da ii guerra, e em particular a partir dos finais dos anos 50, a canção tornou-se o veículo da poesia e a forma que a juventude, em cada época, encontrou para exprimir as suas esperanças e os seus protestos. a esta geração não resta senão a nostalgia, o desencanto, o lirismo e a ironia. ‘se alguém pudesse pôr um fim à maldição/que entristece a nossa geração/talvez se o maradona ainda jogasse futebol / e o rock and roll fosse a nossa canção’.
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